17.2.05


Em certos lugares do mundo há ainda povos e rebanhos, mas não entre nós, irmãos: entre nós só há Estados.
O Estado? O que vem a ser isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.
O Estado é o mais frio dos frios monstros. É frio mesmo quando mente; e eis aqui a mentira que sai da sua boca: «Eu, o Estado, sou o povo.»
Mentira! Os que criaram os povos e lançaram sobre as suas cabeças uma fé e um amor, esses eram criadores: assim serviram a vida.
Mas, destruidores, armaram laços à multidão, e a isso chamam Estado; suspenderam sobre as suas cabeças uma espada e cem apetites.
Onde ainda há um povo, aí o Estado não é compreendido, mas odiado como o mau-olhado, como um pecado contra a moral e o direito.
Eu vos dou este sinal: cada povo fala numa língua particular em matéria de bem e de mal: o seu vizinho não a compreende. A sua linguagem é diferente na moral e no direito.
Mas o Estado sabe mentir em todas as línguas do bem e do mal; e em tudo quanto diz, mente - e quando tudo tem, roubou-o.
Tudo nele é falso; morde com dentes falsos, esse intratável. Até as suas entranhas falsas.
A confusão de todas as línguas do bem e do mal, eis o sinal que vos dou: tal é a marca do Estado. Na verdade, é um sintoma da vontade de morrer! Na verdade, é um convite aos pregadores da morte!
Nascem homens de mais: o Estado foi inventado para aqueles que são supérfluos!
Vede como ele vos atrai, aos supérfluos! Como ele os engole e mastiga e os volta a mastigar!
"Na terra não há nada maior do que eu; eu sou o dedo soberano de Deus" - assim grita o monstro. E não são só os que têm vista curta e ouvidos sensíveis que se ajoelham diante dele!
Ai! Também em vós, grandes almas, ele sussurra as suas sinistras mentiras. Ai! Ele encontrou os corações ricos que gostam de ser pródigos.
Sim, adivinha-vos a vós também, vencedores do Deus de outrora! Cansaste-vos do combate, e agora a vossa fadiga pôs-se ao serviço do novo ídolo!
Este novo ídolo quereria rodear-se de heróis e de homens respeitáveis. Este monstro frio gosta de se aquecer ao sol das boas consciências.
Dar-vos-á tudo, contanto que o adoreis, a este novo ídolo; comprará por este preço o brilho da vossa virtude e o olhar dos vossos olhos altivos.
Quer servir-se de vós como de um isco para a multidão. Sim, inventou com isso uma máquina infernal, um corcel da morte, tilitante sob o seu ajaezamento de honras divinas.
Sim, inventou assim para uso da multidão uma forma de morte que se glorifica de ser vida; era na verdade o melhor serviço que se podia prestar aos predicadores da morte.
O Estado é o lugar onde todos, bons e maus, estão intoxicados; onde todos se perdem, bons e maus, onde o lento suicídio de todos se chama «a vida».
Vede, pois, esses supérfluos! Aproximam-se das obras dos inventores e dos tesouros dos sábios: a esta rapina chamam a sua «cultura» - e neles tudo se transforma em doença e confusão.
Vede, pois, esses supérfluos! Estão sempre doentes, vomitam a bílis; é a isso que chamam jornais. Entredevoram-se e nem sequer chegam a digerir-se.
Vede, pois, esses supérfluos! Adquirem riquezas e só se tornam mais pobres. Querem o poder, e primeiro que tudo a alavanca do poder, muito dinheiro - esses impotentes!
Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns por cima dos outros e arrastam-se mutuamente para o lodo e para o abismo.
Todos querem ascender ao trono: é a sua loucura - como se a felicidade estivesse no trono! Muitas vezes é a lama que está no trono -, e muitas vezes é o trono que está plantado no lodo.
São todos loucos, eu vo-lo digo, outros tantos macacos trepadores e febris. O seu ídolo, esse monstro frio, cheira mal: também eles, esses idólatras, cheiram mal.
Quereis sufocar na exalação das suas goelas e dos seus apetites, ó meus irmãos? Arrancai antes as janelas, e saltai para o ar livre!
Evitai esse cheiro odioso! Evitai cair na idolatria desses supérfluos!
Evitai esse cheiro odioso! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!
Ainda existe terra livre para as grandes almas. Para aqueles que se exilam voluntariamente, solitários ou aos pares, ainda há vagos muitos sítios onde sopra o hálito dos mares tranquilos.
Ainda existe uma vida livre para as grandes almas. Na verdade, quando se possui pouco, tanto menos se é possuído: abençoada seja a pobreza modesta!
Onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo: onde acaba o Estado começa o canto da necessidade, a única e insubstituível melodia.
Onde
acaba o Estado - olhai para lá, meus irmãos! Não distinguis o arco-íris e as pontes que levam ao Super-humano?
Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra