15.11.04

Reality-Show

Da toca assiste-se ao verão patrocinado por S. Martinho, muito dado, como se sabe, às degustações do magusto, com víveres seleccionados e bebida para as gentes saltarem sobre a fogueira. Trouxe castanhas a não-sei-quantos euros o quilo, figos muito e pouco passados e nozes, iguarias para serem regadas, e bem, como se deseja, com água que é vinho feito com o pé, para a tontura subir à cabeça. Foi neste verão animado que reapareceu António Guterres para dizer que isto por cá anda com laivos de reality-show, com perigosa promiscuidade entre poderes. Tem razão o orador das estatísticas, dos números e das falas desenvoltas. Mas o espectáculo começou há muito tempo, senhor. Há muito que este jardim se converteu ao olhar do Big Brother, tanto que até nas escolas das criancinhas entrou para ser analisado. Agora, talvez, a coisa esteja mais visível, mais tentacular, mais entregue ao show versus realidade, ao show e realidade, às caras e notícias; ao “Caras Notícias”. São pecados da época, senhor. Que Grande Irmão da humanidade acabará com eles?

Outras caras e outras notícias preencheram os horários que chamam de nobres, prolongados nas tele-jornadas da informação, sempre de objectiva em riste, mui atenta, rodeada pelos mesmos comentadores e colunistas de sempre que de olho clínico muito (con)centrado traduziram os desenvolvimentos do extraordinário episódio do Congresso do PSD que se quis às direitas na sua vigésima sexta edição, sob o auspicioso signo da confiança e da verdade que em alvas letras garrafais sobressaíram do mar laranja do cenário para que o povo não deixasse de ver, nem de ler, nem de entender de uma vez por todas que ela, a verdade verdadinha, existe, sem ruídos que manchem a alvura de tão nobre palavra. E antes do pano cair sobre esta produção, ainda houve tempo para o aclamado primeiro-ministro lançar, qual bala, uma promessa bombástica: não pretende o senhor pedir-nos mais esforços, primeiro às portuguesas, como mandam as boas maneiras, depois aos portugueses, porque ambos os sexos têm sido demasiado castigados nestes últimos tempos, muito por culpa das leis da economia, madrasta e global nestes tempos de instabilidades mil. Cá estaremos para ver os nossos ordenados aumentados, o poder de compra aumentar, a vida começar a desbotar daquele laranja para um cor-de-rosa iluminado e andarmos por aí cheiinhos de confiança e com um sorriso rasgado nos lábios, ante a expectativa de sentirmos o gosto da lagosta na viragem do ano. Estamos muito certos de que isso acontecerá a muitos de nós. Obrigado pela confiança, Sr. Santana.