23.2.05


Ai bela toca!, estamos definitivamente a ser invadidos por aquele grande monstro escavador que galopa em direcção ao nosso refúgio, com ganas de querer destruir a nossa verde floresta, outrora vasta, agora reduzida a este quadrado que nem dos céus os satélites marcam. É ver o monstro em marcha, escavando progresso, para erguer a sua grande obra de condomínios onde os senhores se fecharão da ladroagem crescente em tempo de tamanha crise. São eles, os meliantes, ratos escavadores na vida que se entregaram ou caíram nas malhas da desigualdade social, essa gorda aranha cuja teia precariamente se explica, e que, uma vez tecida, é vê-la em expansão, agarrando os desamparados que tombaram por conta própria ou aqueles que foram atirados por terceiros, e que, depois de presos na teia viscosa, são finalmente largados nas ruas, que, sendo de amargura, os olhos de muitos humedece, mas só quando, de passagem, dão de caras com a indigência exposta, enrolada na maltrapilha pobreza. Quando isso acontece, quando observam a desgraça alheia, trauteiam um choroso rosário de falinhas carinhosas, embargadas pela solenidade: ai coitadinhos, ai coitadinhos. Coitadinhos dos que nada possuem, que tanto frio passam sem estômago aconchegadinho. Mas a vida é assim, rezam baixinho; e se assim é, que cada um siga o seu caminho, às vezes com interrogações: que lhes terá acontecido? E Deus nos livre da vida nos pintar semelhante quadro. Ora para estes que na rua dormem, bela toca, não há condomínios. Para eles, não há floresta que abaixo se deite, porque, no final de certas contas incertas, precisa o globo de espaços verdes, bonitos e oxigenados, para meio mundo ainda viver mais uns séculos sem necessitar de "aprender a respirar". E onde pode estar o paralelo que nem sequer se tentou fazer? Mais dia, menos dia, também tu, ó toca, vens abaixo, e fico eu sem o teu protector tecto terreal. Já vês: rua comigo. E aí, só não serei um coitadinho porque já sou bicho desgraçado, perseguido pela repulsa humana, que, de todos os ratos, só gostam dos amestrados, dos engaiolados, dos em desenho animados; ou então daqueles que nas mãos humanas são manipulados, injectando-lhes cancros, amputando-lhes membros, para que a ciência evolua, até ela transformar o bravo homem em "animal eterno". E assim, como não pertenço a nenhuma dessas classes, indigência com ele. Comigo, que sempre fui rato do campo e que do campo talvez tenha de fugir, para procurar morada num esgoto em cidade imunda. Depois admiram-se das grandes epidemias, bela toca. Então não somos nós obrigados a chafurdar na imundície deles? Como, como não ficarmos furiosos, com vis apetites de lhes filar as carnes? Mas devo de estar a ver mal as coisas. Há neste sangue qualquer coisa de rato-cego. Porque a vida é assim, reza-se por aí. Há para uns; escasseia para outros. A vida é assim, esse grande hino da resignação, do bom acomodamento, do o-mundo-é-o-meu-umbigo, que já teve cordão, mas que agora anda à solta, livre, governando(-me). Que viva o meu umbigo em limpeza e que cada um trate do seu. Assim é a vida. Cada vez mais longe, do próximo. Será mesmo assim, ó toca? Ou estou eu delirando perante o monstro que se agiganta na sua destruição até este tugúrio?