24.5.05

Diálogos de Morte # 10

- Por favor minha senhora, anseio adquirir uma planta carnívora.
- Está no sítio certo, caro senhor. De momento temos estas três espécies diferentes.
- São de boa boca, por assim dizer?
- Não tenho tido reclamações, embora não seja produto com muita saída.
- Ai, sim?
- Acho que as pessoas ficam de pé atrás.
- Nada me espanta. Também as vejo a avançar os pezinhos para dentro dos sufocantes supermercados à procura dos "raids" que também as matam a elas do que procurarem na natureza um mata-moscas vivo, eficaz e decorativo.
- Mas é uma planta esquisita!...
- Ora essa! A boniteza não vai à mesa. E se às maravilhas mil cumpre, que interessa a beleza do animal, salvo seja! Toda a natureza tem o seu encanto. Nem todos podem ser bonitos - desde que cumpram o seu dever, a estética é de somenos.
- Pois… mas as pessoas gostam de coisas bonitas em suas casas.
- Pois eu só gosto de mamarrachos e manipanços engessados. São gostos. Talvez tenda a ver na fealdade a verdadeira essência das coisas. A perfeição, digamos assim, fere-me os olhos.
- Pois… são gostos. E então, qual delas o interessa?
- No alto da minha sinceridade vocifera o veredicto: todas! Esta aqui tem bolsa grande, o que deve ser estômago para devorar varejeiras pré-históricas. Esta é assim mais a atirar para a beleza, e embora lhe franza o sobrolho, parece ser menina para encher o bandulho de melgas… Diga-me uma coisa: ouve-se o derradeiro zumbido dos ridículos alados antes de se calarem de vez?
- Isso, não sei.
- É pena! Em todo o caso, sempre poderei confirmar, não é assim?
- Pois...
- Levo as três, minha cara senhora.
- Faz muito bem. Em minha casa também tenho uma. E agora que o Verão está à porta, são de uma eficácia impressionante.
- Ah, sim!?
- Acabam mesmo com os insectos!
- Não duvido, minha senhora. Deve ser um alívio, calar assim, com grande limpeza, alguns zumbidos insuportáveis, irritantes e até mentirosos. E carne humana?...
- Carne humana?
- Dizem que é manjar adocicado, de agradável degustação. Será que elas gostam, ou franze-lhes as pétalas, ou espinhos, ou dentes, ou lá o que isso é?
- Ah, isso não sei.
- Imagine que me dava para fazer calar uma ou outra boca?... Vamos supor: um ministro, por exemplo. Acha que conseguia livrar-me do cadáver por essas bocas, em vez de encher o gélido estômago do frigorífico, como estupidamente fazem muitos assassinos de ridícula esperteza?
- Mas se você matasse um ministro era logo descoberto.
- Destroçado, lhe confesso: a minha parca inteligência não me havia prevenido para essa evidência. O cego furor da acção aniquila a maturação do pensamento. Mas olhe que há crimes de uma perfeição assombrosa!... Repare bem em todos os crimes contra a humanidade que por todo o lado se observam, muitos deles gozando de impunidade! Quem sabe se...
- Seria descoberto. Toda a gente sabe tudo!
- Também não mente, com mais esse rude golpe no meu plano que, de morto, já cheira a defunto.
- Mas porque não começa por baixo?
- Por baixo?
- Alguém menos conhecido…
- A sua fantasia enche-me as medidas, minha senhora.
- Eu…
- Não me esteja a arregalar esses berlindes negros, minha senhora. A si, não lhe espetava a mesma faca vinte vezes. Tenho outras ambições, quiçá mais desmedidas. Digamos… a bem da Nação!
- Então quer levá-las?
- Levá-las?
- As plantas!
- Pois com certeza. Já lho tinha informado! Este parêntesis ao qual não teve arte para me presentear com uma resposta que alimentasse as minhas (e suas) esperanças não invalida a minha irreversível decisão. Levo-as. E hei-de fazer experiências alimentares nunca vistas entre estes grandes reinos, o animal e o vegetal. E fica esta conversa entre nós, minha senhora. Se os jornais anunciarem o súbito e estranho desaparecimento duma figura de renome, não acredite. A imprensa é o maior viveiro das escandaleiras, imprecisas e nem sempre verdadeiras. E mesmo que verdade seja, os seus belos lábios só se abrirão para dizer: Como foi este "Bem" possível de acontecer! Certo? Certo. Bem-haja, boa vendedeira.

1 Comments:

Blogger MG said...

estou a ver que a espécie humana inspira desconfiança ao "Aqui ha Rato". No "Fala Barato", infelizmente, as coisas não estão melhor. Parabéns pela qualidade da escrita e pela subtileza da mensagem!

10:08 da tarde  

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