31.5.05

Diálogos de Morte # 11

Por uma vez que talvez tenha mais exemplos… um monólogo, senhores.
Mas que queres tu, rafeiro? Estou com medo, não o cheiras? Olha como tremo só de imaginar como será triste o teu focinho à luz do dia. De onde vieste? És uma fera? És uma reencarnação maldita? O pior ser alguma vez parido, com a alma penada presa nesse crânio sem miolos gerados para a fala? Também estás sozinho? Abandonaram-te, canino? Foi a solidão! Cheiraste a minha solidão e ficaste atraído. Ou queres ferrar-me o dente na esquina mais deserta? Não me digas que também padeces de males estranhos, espírito peludo! Xô! Vai-te embora! Não tenho febras, nem as minhas, cruas ou cozinhadas, te enchiam: sou entrecosto magro, de ossos deves estar tu farto!
Olha aqui uma lixeira! Fareja! Fica aí, entretido toda a noite. Olha-me esse universo infindável de prazeres por descobrir! Faltar-te-iam anos para cheirares toda a merda que aí está. Diverte-te aí. Que queres de mim? Nada tenho para te oferecer! Apre, que é teimoso! Estás perdido? Também eu! Acha-te. Para que queres o focinho? Dá-lhe uso, caramba! Procura o teu dono e arranca-lhe os tomates como vingança. Para te chegares, deves ter algum problema. Deves ter carraças do tamanho de morcegos.
Que raio! Que perseguição obstinada! Não te cansas, tu? Não estou habituado a amores à primeira vista. Não me digas, ó espírito, que tenho feromonas especiais: não atraem bichos humanos, deixam cães vadios hipnotizados…
E vieste até aqui! Muito bem, estou entregue. Muito obrigado por teres sido o meu cão da guarda. Salvaste-me. Podia ter entrado em pânico neste breu desconhecido, mas não, vim seguro, contigo à ilharga, nesta benigna perseguição. Estou muitíssimo agradecido! Se te ofendi, oh!, se te ofendi, peço perdão. Trabalhaste bem, passaste com distinção. Podes continuar, podes procurar outro passeante solitário, protegê-lo, e fazer-lhe companhia. Mas tem cuidado! Dizem que nos tempos que correm temos de ter muito cuidado. Pelo cheiro sentiste que temos qualquer coisa em comum. Mas nada de ilusões, ó espírito! Há quem perfume a pele. Podem enganar-te: parecem amigos e depois ferram-te o dente. Vá, vai! Calcorreia o teu mundo de cheiros… Não?!... Queres guarida, é, espírito? Tecto, comida, afecto? Todos procuramos o mesmo, não é assim? E se eu tos negar? Sou mau ser? Ser humano, sem humanidade? Será que desistes? Ou perseguir-me-ás de cauda pedinte até amoleceres a minha vontade, tornando-a papa? Papa! Pai. Papa, pai! Caridade! Papa caridosa, religiosamente servida, sorvida, vendida, não dada, não, nada. Preço, preso. Para tudo. Olhas para mim!? Muito pedes tu, cão. Vá, entra lá para o covil, estranho ser. Aos espíritos perdidos estendo eu a minha mão venada pouco dada a apertos.