26.1.05

Diálogos de Morte # 2

E eis que da tecla deste fraco escrevinhador salta mais um inquietante “Diálogos de Morte”. Na verdade, caríssimos leitores, é mais um episódio arrancado à mesma personagem. E sendo ainda mais verdadeiro, vos digo: faz parte de coisa minha, que mais não é do que historieta sem fim, vagarosamente tecida na ociosidade, mas - e perdoem-me a avaliação em auto -, sendo eu rato generoso, convosco partilho uma ou outra passagem que bem sobrevive sozinha, assim, sem mais nem menos, com a cara mais podre do que envergonhada. É o caso presente. Não me levem a mal.
E chega de achegas e intróitos de mau comunicador. Passemos à grande acção. Tal como acontecera na edição primeira, uma personagem falará em itálico, a outra dando voz à “normalidade”. Diverti-vos, mas - uma advertência! - certificai-vos que o vosso espírito não está eivado por dogmas, que, pelo contrário, está livre, solto, que esvoaça para lá do avassalador mundo das obrigações do atarefado dia-a-dia, tantas vezes pintado de cinzento. Que haja luz nos vossos olhos, e que eles vos deixe ver as belezas do ridículo.

Ah, já me esquecia! Um estranho ser que sai de um exame médico. Um carro que avaria. Um reboque com homem dentro que é chamado. A viagem até uma oficina. E não é preciso mais: temos diálogo:
- Então o que é que ele tem?
- Não faço ideia. Não percebo nada de máquinas; elas não querem nada comigo, eu só quero usar-me delas.
- Mas não tentou ver o que se passa?
- Deve estar com frio, ou falta-lhe o ar, ou enforcou-se com a correia, ou mijou o óleo, sei lá. De beber é que não é.
- Para onde quer que o reboque?
- Boa pergunta, meu caro senhor. Conhece alguma oficina?
- Conheço várias.
- Siga para uma qualquer.
- Uma qualquer?
- Confio nos desconhecidos.
- Faz mal, nos tempos que correm não podemos confiar em ninguém.
- Que fazia eu agora se não confiasse no senhor? Nada! Ficava a olhar para as entranhas do monte de lata a tentar reanimá-lo com a mente.
- Também é verdade!
- Preciso de confiar, apesar de você poder ser tão perigoso como o pior dos assassinos em série. Não tem cara disso, parece um honrado pai de família, e no entanto, calhando, acabou de violar três matrafonas eslovacas, arrancou-lhes as cabeças, comeu-lhes os olhos, abriu-lhes os crânios à pancada como se fossem cocos loiros e deu os cérebros aos cães famintos. E agora está aqui para levar um gajo qualquer com a sua carripana avariada. Quem lhe diz que eu não avariei o carro de propósito para lhe arrancar o coração? Ou que ainda me corre nas veias o sangue maldito do Vlad vampírico, que o levo para um descampado para empalá-lo, salvo seja.
- Grande filme!
- O Drácula?
- Esse, de eu andar por aí a violar matrafonas e do senhor me arrancar o coração. Era justo: cá se fazem, cá se pagam.
- Nem mais! Quem mata também morre. Por isso, meu caro amigo, viva. Não se preocupe com os desconhecidos. Coma eslovacas, ou vacas só, e cabras, montesas e outras maltesas de todas as raças. Viva. Viva antes que lhe nasça uma tromba de elefante na barriga.
- Essa era boa!
- Olhe para a minha boca.
- Que é isso?
- Já alguma vez imaginou ter uma nova boca a querer devorar a boquinha que Deus lhe deu?
- Não!
- Então não se admire com trombas no ventre. De mais a mais, meu senhor, ninguém conhece ninguém, na verdade. Viva, viva.
- Está bem visto! Também, não podemos fazer outra coisa, temos de viver.
- Ai, não, que não se pode! Basta querer, e ter as bolas no sítio: pum, já está, já ardo no Inferno.
- Já está preso.
- Como disse?
- O seu carro já está preso. Vamos?
- Vamos.
- Levo-o a uma oficina que fica aqui perto. Os gajos são bons.
- Isso é que é preciso: ir encontrando gente boa, conhecidos ou por conhecer.
- Por acaso, não estive com eslovacas, mas estive com brasileiras.
- Ora vê, quase adivinhei! Sempre achei que tinha qualquer coisa de mago. São assim tão melosas como se apregoa aos quatro ventos?
- São diferentes.
- Diferentes como? Três mamas, receptáculo aveludado onde descansar os tomates?
- Esta falava muito.
- Ah sim! Pediu para lhe poupar a cabeça?
- O senhor é um brincalhão! O que é que faz?
- Não faço nada. Sou doente e vivo às expensas da minha mãe.
- Vive de quê?
- Não grite, caramba!
- É do barulho do carro, não o ouvi.
- Vivo dos restos da fortuna da minha mãezinha.
- Tem sorte.
- É o que não me falta, de facto. Fiquei doente, fui radiografar a boca do diabo, saio do exame e a carroça recusa-se a andar. É preciso ter sorte!
- Teve um azar! Acontece a toda a gente.
- Nunca vem só, não. O bom povo é que tem razão: “quando se tem azar até na cama se parte as pernas.”
- Mas ainda tem mãe. Eu já não tenho, nem mãe nem pai.
- Estamos quase iguais.
- Então?
- Pai, nunca lhe vi nem carnes nem ossos. Mãe é aquela velha desgrenhada que fala com papagaios poliglotas na varanda do asilo. É a mesma coisa que ter coisa nenhuma.
- Mas sempre a visita e fala com ela!
- Sim, sou mais uma ave na sua vida a abanar a cabeça dizendo sim sim aos seus fados chorosos, dizendo, Não pense nisso, não pense nesses monstros. Eles não lhe comem o cérebro como julga, eles não a atam à cama. Os que a amarram são outros, são os de bata branca, aqueles anjos que lhe tratam da saúde, ou melhor, das saúdes, as do corpo e as da alma.
- Passou-se?! A minha sogra também não tem os parafusos todos.
- A minha mãe tem os parafusos todos, todos com as roscas moídas.
- Teve azar!
- Teve azar, diz o senhor! Para si é tudo fruto da sorte e do azar. O azar, meu senhor, é um bicho-de-sete-cabeças, quando aparece parte-nos as pernas.
- Essa, nunca ouvi!
- Nem eu!
- Como é que é?
- Deixe lá, é melhor não saber.
- Também não há tempo: está entregue.
- Obrigado, Senhor, por calares esta boca do azar!
- Como?
- Come, come, e bebe e fode antes de perderes os parafusos…
- Que disse?
- Obrigado, Senhor!

2 Comments:

Blogger augustoM said...

Um conta o que talvez não queira contar.
O outro ouve circunstancialmente.
O diálogo de certa maneira representa situações em que por vezes nos vimos envolvidos, onde as palavras não são importantes, mas o que importa por delicadeza é dizer qualquer coisa. E como as palavras são como as cerejas, somos levados a dizer coisas a um estranho, que em outra situação não o fariamos.

2:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

não concordo com a 1ª parte do comentário anterior.
foi um prazer descobrir este blog e ler a estrondosa história que o rato, presumo, esgalhou. Mas aceito opiniões contrárias.

11:33 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home