Diálogos de Morte
No alvor deste ano que aos poucos arriba, abre-se aqui uma nova rubrica que, talvez, não passe desta edição: única e sem exemplo. Chamo-lhe "diálogos de morte", fino nome que muito pensamento moeu durante as bêbedas insónias paridas pela passagem de ano. Que não se espere ser (sempre) a morte o assunto central. Que não se espere reflexões existencialistas de génio mui pensador. O incrível nome surge do apurado gosto pelo ridículo, numa manobra de perigosa diversão alienada que, com muito gosto, convosco partilho.
Neste número primeiro, o diálogo desenvolve-se num centro de saúde, entre o paciente e a senhora responsável pelo atendimento. Apresenta-se assim: em itálico fala a senhora, em “normal” fala o cavalheiro. Ei-los na desconcertante acção:
- Que estranho! Diz aqui que o senhor está… está morto!
- Desculpe, mas não acredito. Não posso crer que o Paraíso tenha estas cores, que consinta estas vestimentas, que haja caras como a da senhora e que no ar circule tanto cheiro a doença. De mais a mais, não vim de nuvem nem sobrevoei rios de mel. Nada disto respira a idílico. Se estou moribundo, encontro-me no Inferno, ou no purgatório, à espera da senha três mil para entrar na sala da juíza.
- Pois, se o senhor está aqui… M. A., não é?
- É? Foi? Decida!
- Deve ser um erro. O senhor está aqui, não pode estar morto!
- A sua perspicácia desarma o meu fraco entendimento, minha senhora. Calculo que esteja a rebentar de razão!
- E agora?
- E agora, morto ou vivo, exangue ou a estoirar de pletora, quero falar com a doutora! Talvez ela consiga descobrir o meu estado, talvez consiga agarrar a minha pulsação e decidir se o meu coração bate ou se acabou de parar como os seus dados informáticos pretendem anunciar.
- Mas a questão não é essa!
- A questão é um erro, minha senhora.
- Porque é que aqui está morto?
Neste número primeiro, o diálogo desenvolve-se num centro de saúde, entre o paciente e a senhora responsável pelo atendimento. Apresenta-se assim: em itálico fala a senhora, em “normal” fala o cavalheiro. Ei-los na desconcertante acção:
- Que estranho! Diz aqui que o senhor está… está morto!
- Desculpe, mas não acredito. Não posso crer que o Paraíso tenha estas cores, que consinta estas vestimentas, que haja caras como a da senhora e que no ar circule tanto cheiro a doença. De mais a mais, não vim de nuvem nem sobrevoei rios de mel. Nada disto respira a idílico. Se estou moribundo, encontro-me no Inferno, ou no purgatório, à espera da senha três mil para entrar na sala da juíza.
- Pois, se o senhor está aqui… M. A., não é?
- É? Foi? Decida!
- Deve ser um erro. O senhor está aqui, não pode estar morto!
- A sua perspicácia desarma o meu fraco entendimento, minha senhora. Calculo que esteja a rebentar de razão!
- E agora?
- E agora, morto ou vivo, exangue ou a estoirar de pletora, quero falar com a doutora! Talvez ela consiga descobrir o meu estado, talvez consiga agarrar a minha pulsação e decidir se o meu coração bate ou se acabou de parar como os seus dados informáticos pretendem anunciar.
- Mas a questão não é essa!
- A questão é um erro, minha senhora.
- Porque é que aqui está morto?
- Se calhar até estou.
- Isto confunde-me! Se está aqui em como o Sr. está morto por alguma razão é!
- Pela mesma razão que estaria aí que estou vivo. É uma informação. Alguém achou que eu devia de estar morto. Está no seu direito; se quis ver-me morto – matou-me.
- Mas não é assim! Não se brica com a vida!
- Então ressuscite-me e acabe com esta questiúncula de vida e de morte. Pareço vivo, não pareço? Respiro, falo, mexo membros. Que mais provas quer?
- Se calhar há outro Sr. com o seu nome. Devia ver isso.
- Fique descansada. Vou indagar. Vou correr mundo à procura desse patife que morreu com o mesmo nome que eu. É uma questão de honra! Não se mata assim um outro, assim desta maneira cobarde só porque tem o mesmo nome. Que quer ele? Enlouquecer-me? Quem se julga para me matar com ele? Estou vivo, patife! Vou encontrá-lo, minha senhora, e, se for preciso, obrigo os ossos a falarem: Restitui a verdade perante todos, filho da puta. Fala, morto. Diz a esta senhora que te finaste, que perdeste o pio na depressão do Cabo da Boa Esperança; eu ainda ando por aqui de carnes vivas! Venho a um posto de saúde para dela tratar e descubro-me falecido. Tudo por tua causa, M. morto!
- Não se exalte!
- Não estou exaltado, estou a descansá-la, a prometer-lhe que de tudo farei para deslindar este caso insólito. Vou procurar o morto do seu computador, trazê-lo aqui para a senhora comparar, para ver que este outro M. A. que aqui se apresenta em frente aos seus olhinhos está vivo e quer entrar no gabinete da médica pelas próprias perninhas, sem dar qualquer indício que leve alguém a julgá-lo sem vida.
- Eu vou ver o que se passa, Sr. M.
- Oh!, não se dê ao incómodo. Imagino a trabalheira que deve dar chafurdar nesta confusão do morto-vivo que se junta a essa outra confusão que dorme aí ao seu lado, a essa miríade de papéis que não consegue escoar nas muitas horas que passa aqui a labutar, a dar de si o melhor que pouco ou muito é aquilo que a obrigam a fazer ou deixar para a próxima eternidade, não vá dar ares de super-mulher aos olhos de terceiros mal-intencionados. Imagino os milhares de impressos necessários para descobrir se respiro ou se alimento minhocas, se ando aqui ou se por aqui já não tenho voz. Isto é coisa do Estado, minha senhora?
- Como assim?
- A informação do meu falecimento percorre todos os computadores da nação? Estou morto aqui, e nas finanças, e nos tribunais?...
- Não sei, julgo que sim!
- M. A. está morto, minha senhora, e esse morto sou eu! E agora com a sua licença, vou me sentar, mortinho pela chamada da doutora. Bom ano para si e para os seus, minha senhora.
- Pela mesma razão que estaria aí que estou vivo. É uma informação. Alguém achou que eu devia de estar morto. Está no seu direito; se quis ver-me morto – matou-me.
- Mas não é assim! Não se brica com a vida!
- Então ressuscite-me e acabe com esta questiúncula de vida e de morte. Pareço vivo, não pareço? Respiro, falo, mexo membros. Que mais provas quer?
- Se calhar há outro Sr. com o seu nome. Devia ver isso.
- Fique descansada. Vou indagar. Vou correr mundo à procura desse patife que morreu com o mesmo nome que eu. É uma questão de honra! Não se mata assim um outro, assim desta maneira cobarde só porque tem o mesmo nome. Que quer ele? Enlouquecer-me? Quem se julga para me matar com ele? Estou vivo, patife! Vou encontrá-lo, minha senhora, e, se for preciso, obrigo os ossos a falarem: Restitui a verdade perante todos, filho da puta. Fala, morto. Diz a esta senhora que te finaste, que perdeste o pio na depressão do Cabo da Boa Esperança; eu ainda ando por aqui de carnes vivas! Venho a um posto de saúde para dela tratar e descubro-me falecido. Tudo por tua causa, M. morto!
- Não se exalte!
- Não estou exaltado, estou a descansá-la, a prometer-lhe que de tudo farei para deslindar este caso insólito. Vou procurar o morto do seu computador, trazê-lo aqui para a senhora comparar, para ver que este outro M. A. que aqui se apresenta em frente aos seus olhinhos está vivo e quer entrar no gabinete da médica pelas próprias perninhas, sem dar qualquer indício que leve alguém a julgá-lo sem vida.
- Eu vou ver o que se passa, Sr. M.
- Oh!, não se dê ao incómodo. Imagino a trabalheira que deve dar chafurdar nesta confusão do morto-vivo que se junta a essa outra confusão que dorme aí ao seu lado, a essa miríade de papéis que não consegue escoar nas muitas horas que passa aqui a labutar, a dar de si o melhor que pouco ou muito é aquilo que a obrigam a fazer ou deixar para a próxima eternidade, não vá dar ares de super-mulher aos olhos de terceiros mal-intencionados. Imagino os milhares de impressos necessários para descobrir se respiro ou se alimento minhocas, se ando aqui ou se por aqui já não tenho voz. Isto é coisa do Estado, minha senhora?
- Como assim?
- A informação do meu falecimento percorre todos os computadores da nação? Estou morto aqui, e nas finanças, e nos tribunais?...
- Não sei, julgo que sim!
- M. A. está morto, minha senhora, e esse morto sou eu! E agora com a sua licença, vou me sentar, mortinho pela chamada da doutora. Bom ano para si e para os seus, minha senhora.
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