- Pelo que vejo... o carro tem muitos problemas. É de admirar como ele ainda conseguia andar!
- Também pasmo perante este insondável mistério, Senhor. Carregando problemas, ainda anda, veja bem! Mas deixe-me que lhe diga: é uma vetusta máquina à minha medida.
- Não vou conseguir arranjá-lo hoje...
- Compreendo. A noite já nos cai em cima, e se ele apresenta assim tantas queixas... Olhe, fique com ele.
- Como?
- Assim, como está. Dê-lhe o destino que mais lhe aprouver; eu, não o quero.
- Mas...
- O Senhor abriu-me os olhos. Que faço com um amontoado de problemas em lata enferrujada? Descasque a chapa, arranque o motor, extraia peça por peça todas as velharias que ele ainda conserva dentro do prazo e faça um dinheirinho para si.
- Mas o carro é seu, o lucro também deve ser para si!
- Dou-lhe o lucro. Não quero nada dessa sucata!
- Mas...
- Hoje ofereço eu; amanhã, se a indigência chegar antes da fortuna, talvez lhe peça uma maçã.
- Não posso...
- Não pode recusar! É um acto de bondade, vindo de um estranho, é certo, mas em hora de dar. Guarde o orgulho ou as sumárias convenções de Justiça e agarre-se a uma insignificante oferenda que, nos dias que vão correndo, ou os meus olhos me enganam, ou é coisa rara de se avistar.
- Se é isso que quer!...
- É isso mesmo.
- E o senhor, como vai?
- Pacifique a sua consciência e não carregue o semblante com a máscara da preocupação. Vou a pé, de olhos postos na Polar, a apanhar com os rigores do Inverno pelas trombas. Para alguns, meu senhor, a vida roda num casino: se tiver sorte, apanho boleia de uma ricalhaça formosa; enroscamo-nos num hotel de muitas estrelas; ela fuma; eu fumo e bebo borbulhas caras; ela deixa um cheque chorudo no leito suado; eu agarro no dinheiro e compro uma ilha no Pacífico, onde irei acabar os dias a brincar com tubarões. Se tiver azar, levanta-se uma tempestade dos diabos; cai-me um raio em cima; fico em cinzas; passa um cão vadio e mija em cima do meu pó, sem que se suspeite que alguma vez tenha existido. Se tudo isto girar como tem girado, que é o mais certo, assim num género de empate, sem ganhar nem perder, sem muita sorte, sem muito azar; ando, ando, converso com os botões, ando e ando, até o nariz farejar a casota. E quando ele me avisar que nela estou, dou umas voltas até deitar os ossos nas palhinhas.
- O senhor desculpe, mas, está bem?
- Então não estou? Desfeito da carroça, sou passarinho sem predador.
- Tem certeza?
- Nem por isso. O senhor tem certezas?
- Algumas.
- Desconfie. Sobretudo dessas! Tenha uma boa noite. De amor, se os formigueiros para aí o chamarem. E aproveite: a lua está prenha, mas tome cuidados contra as fertilizações indesejadas, que este mundo está a rebentar.
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