7.3.05

Caríssimos leitores,
Depois da tremenda explosão que por aqui se deu, o regresso às lides é feito sob o benfazejo signo do delírio, tão caro a esta toca perdida na vastidão da blogosfera.
A reabertura é assinalada pelo quarto tomo da série “Diálogos de Morte”, esse rebuscadíssimo título de inefável imaginação, só ao alcance dos mais argutos autores ao serviço da ditadura da palavra.
Para este quarto número convidámos um heróico proprietário de uma máquina avariada e um bom mecânico. Ao mecânico, por ser bom, damos-lhe a graça do itálico. O outro, do hábito não se livra: fala com “palavras direitas”.



- Pelo que vejo... o carro tem muitos problemas. É de admirar como ele ainda conseguia andar!
- Também pasmo perante este insondável mistério, Senhor. Carregando problemas, ainda anda, veja bem! Mas deixe-me que lhe diga: é uma vetusta máquina à minha medida.
- Não vou conseguir arranjá-lo hoje...
- Compreendo. A noite já nos cai em cima, e se ele apresenta assim tantas queixas... Olhe, fique com ele.
- Como?
- Assim, como está. Dê-lhe o destino que mais lhe aprouver; eu, não o quero.
- Mas...
- O Senhor abriu-me os olhos. Que faço com um amontoado de problemas em lata enferrujada? Descasque a chapa, arranque o motor, extraia peça por peça todas as velharias que ele ainda conserva dentro do prazo e faça um dinheirinho para si.
- Mas o carro é seu, o lucro também deve ser para si!
- Dou-lhe o lucro. Não quero nada dessa sucata!
- Mas...
- Hoje ofereço eu; amanhã, se a indigência chegar antes da fortuna, talvez lhe peça uma maçã.
- Não posso...
- Não pode recusar! É um acto de bondade, vindo de um estranho, é certo, mas em hora de dar. Guarde o orgulho ou as sumárias convenções de Justiça e agarre-se a uma insignificante oferenda que, nos dias que vão correndo, ou os meus olhos me enganam, ou é coisa rara de se avistar.
- Se é isso que quer!...
- É isso mesmo.
- E o senhor, como vai?
- Pacifique a sua consciência e não carregue o semblante com a máscara da preocupação. Vou a pé, de olhos postos na Polar, a apanhar com os rigores do Inverno pelas trombas. Para alguns, meu senhor, a vida roda num casino: se tiver sorte, apanho boleia de uma ricalhaça formosa; enroscamo-nos num hotel de muitas estrelas; ela fuma; eu fumo e bebo borbulhas caras; ela deixa um cheque chorudo no leito suado; eu agarro no dinheiro e compro uma ilha no Pacífico, onde irei acabar os dias a brincar com tubarões. Se tiver azar, levanta-se uma tempestade dos diabos; cai-me um raio em cima; fico em cinzas; passa um cão vadio e mija em cima do meu pó, sem que se suspeite que alguma vez tenha existido. Se tudo isto girar como tem girado, que é o mais certo, assim num género de empate, sem ganhar nem perder, sem muita sorte, sem muito azar; ando, ando, converso com os botões, ando e ando, até o nariz farejar a casota. E quando ele me avisar que nela estou, dou umas voltas até deitar os ossos nas palhinhas.
- O senhor desculpe, mas, está bem?
- Então não estou? Desfeito da carroça, sou passarinho sem predador.
- Tem certeza?
- Nem por isso. O senhor tem certezas?
- Algumas.
- Desconfie. Sobretudo dessas! Tenha uma boa noite. De amor, se os formigueiros para aí o chamarem. E aproveite: a lua está prenha, mas tome cuidados contra as fertilizações indesejadas, que este mundo está a rebentar.