25.2.05


Aquele que um dia ensinar os homens a voar deslocará todas as barreiras; fará saltar todas as barreiras, dará à Terra um nome novo, chamar-lhe-á «a Leve».
A avestruz vence na carreira o cavalo mais rápido, mas enterra pesadamente a cabeça na terra pesada; tal o homem que ainda não aprendeu a voar.
A terra e a vida pesam-lhe, e é isso que quer o espírito de Gravidade. Mas aquele que quer tornar-se leve como uma ave deve amar-se a si mesmo; assim ensino eu.
Não com o amor dos doentes e dos febris - porque nesses até o amor-próprio cheira mal!
É preciso aprender a amar-se a si próprio, tal é a minha doutrina, com um amor total e são, a fim de ficar preso a si mesmo em vez de vagabundear com todos os sentidos.
Esta vagabundagem intitula-se «amor ao próximo»; não há palavra que tenha servido para cobrir mais mentiras e hipocrisias, sobretudo por parte daqueles que se tornavam insuportáveis a toda a gente.
E na verdade,
aprender a amar-se, não é uma máxima aplicável a partir de hoje ou de amanhã. É, pelo contrário, de todas as artes, a mais subtil, a mais astuta, a arte suprema, e aquela que requer mais paciência.
O que possuímos está-nos sempre escondido; e de todos os tesouros é o seu próprio que todos desenterram em último lugar. Assim o quis o espírito de Gravidade.
É quase desde o berço que nos dotam com palavras pesadas, com valores pesados chamados «bem» e «mal», porque tal é o nome deste património. Pelo preço desses valores, desculpam-nos o facto de viver.
E se os homens deixam vir a si as criancinhas, é para as impedir a tempo que se amem a si próprias; tal é a obra do espírito de Gravidade.
Quanto a nós, arrastamos conscienciosamente aquilo com que nos carregaram, nos nossos duros ombros, para além de rudes montanhas. E quando estamos encharcados em suor, dizem-nos: "Sim, a vida é difícil de levar!"
Mas é apenas o homem que tem dificuldade em levar-se a si próprio. Porque arrasta às costas demasiadas coisas que lhe são estranhas. Como o camelo, ajoelha-se para se deixar carregar bem.
Sobretudo o homem vigoroso, resistente, cheio de respeito; carrega às costas muitas palavras pesadas, pesados valores que lhe são
estranhos - e a vida parece-lhe então um deserto.
E na verdade, os nossos próprios bens são muitas vezes já difíceis de levar. E o homem, dentro de si, é apenas muito parecido com a ostra - repugnante, viscosa e difícil de apanhar,
- de tal forma que precisa de uma bela concha decorada com belos desenhos para falar a seu favor. Mas mesmo esta arte deve ser aprendida, quero dizer a arte de se transformar numa concha, com bela aparência e uma sábia cegueira!
E ainda por cima o que muitas vezes engana, é ser esta concha frequentemente humilde e triste e ter em excesso o aspecto de uma concha. Ninguém adivinha a profusão de bondade e de força que ela dissimula; os manjares mais delicados não encontram amadores!
Sabem-no as mulheres, pelo menos as mais sofisticadas: uma suspeita de gordura a mais ou a menos, oh! quanta fatalidade se liga a coisa tão pouca!
O homem é mais difícil de descobrir, sobretudo quando se trata de se descobrir a ele mesmo. Muitas vezes o espírito mente a respeito da alma. Eis a obra do espírito de Gravidade.
Mas aquele que soube descobrir-se a si mesmo proclama:"Este é o meu bem, este é o meu mal." Com isso tapou a boca à toupeira, ao anão que diz: "Bem para
todos, mal para todos."
Na verdade, também não me agradam aqueles que declaram que todas as coisas são boas e que este mundo é o melhor dos mundos. Digo que têm a satisfação fácil.
A satisfação fácil, que se acomoda com qualquer coisa, não é o melhor dos gostos! Louvo as línguas e os estômagos recalcitrantes e difíceis que sabem dizer «Eu» e «Sim» e «Não».
Mastigar e digerir tudo, porém - é bom para os porcos, na verdade. Berrar a torto e a direito sim e
ámen, é o que aprendem os burros e aqueles que se parecem com eles!
Um amarelo-torrado, um vermelho-ardente - eis o meu gosto, que mistura sangue com todas as cores. Mas aquele que caia a casa de branco revela-se uma alma caiada de branco.
Uns estão apaixonados por múmias, outros por fantasmas, todos igualmente inimigos da carne e do sangue: oh! como me repugnam todos! Porque gosto de sangue.
E recuso-me a morar ou a demorar-me em lugares onde todos cospem e vomitam à vontade; tal é o meu gosto. Preferiria muito mais viver no meio dos ladrões e dos perjuros. Ninguém traz o seu ouro na boca.
Mas ainda me repugnam mais os lambedores de escarros, e ao animal humano mais repugnante que conheço, chamei-lhe parasita, pois não quer amar, mas viver do amor que têm por ele.
Desgraçados, na minha opinião, são todos aqueles que só podem escolher entre duas coisas: ou tornarem-se animais ferozes ou ferozes domadores. Não construirei entre eles a minha tenda.
Desgraçados são também aqueles cujo destino é
esperar; repugnam-me todos esses guardas-fiscais, tendeiros, reis e outros mandriões ou monos.
Na verdade, também eu aprendi a esperar, mas a esperar-me
a mim mesmo. E sobretudo aprendi a estar de pé, a andar, a correr, a saltar, a trepar, a dançar.
Porque tal é a minha doutrina; se quisermos aprender um dia voar, é
preciso começar por aprender a estar de pé, a caminhar, a correr, a saltar, a trepar, a dançar. - Para aprender a voar não basta um único golpe de asa!
Aprendi a escalar mais de uma janela com as escadas de corda; subi a mastros elevados com pernas ágeis; escarranchado nos elevados mastros do Conhecimento, experimentei uma felicidade muito apreciável,
- as chamas errantes que se acendem no alto dos mastros não passam de um pequeno clarão, mas que grande consolo para todos os navegadores encalhados ou naufragados!
Tomei por muitos caminhos e servi-me de muitos meios para chegar à minha verdade; servi-me de mais
uma escada para chegar à altura de onde o meu olhar percorre os longínquos espaços.
E foi sempre contrariado que perguntei o meu caminho, sempre isso me repugnou! Prefiro interrogar os próprios caminhos e experimentá-los.
Experimentar e interrogar é a minha maneira de avançar, e na verdade é também necessário
aprender a responder a semelhantes perguntas. É esse o meu gosto,
- esse gosto não é bom nem mau, é o meu gosto; não tenho vergonha dele e dele não faço mistério.
"Eis o
meu caminho; e vós, onde está o vosso?" É o que respondo aos que me perguntam o «caminho». O caminho, com efeito, não existe!
Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra