28.2.05

Uma recepcionista, um estranho doente que conversa com uma senhora enquanto espera pelo exame. Elas em itálico. Ele, não. É mais um:

- O seu nome, por favor?
- M. A.
- Idade?
- Quarenta.
- Profissão?
- Não tenho.
- Está desempregado?
- Não, não tenho profissão.
- Mas nunca teve?
- Não.
- Não faz nada?
- Então não faço, vivo.
- Nem qualquer coisa que se possa pôr aqui na ficha de inscrição?
- Se faz questão de martelar nas teclas do computador, ponha chulo, ou parasita, ou qualquer coisa assim que lhe venha à cabeça.
- Não posso escrever isso.
- Minha cara senhora, sou advogado. Está bem assim?
- Mas se não é!
- Mas se quer que eu seja alguma coisa, a partir de hoje sou o insigne advogado A., graças à sua gentileza de enfiar à viva força um canudo na minha vida. Muito agradecido!
- Olhe, pronto, não ponho nada.
- Muito bem, a verdade é uma bóia: vem sempre ao de cima. Mas lembre-se: não pôr nada é pôr alguma coisa.
- Pode passar ali para a sala de espera, Sr. M., e aguarde a chamada.
- Muito bem, eu aguardo. Ali, onde?
- É só virar à esquerda.
- Que esquerda? Minha ou sua?
- À sua esquerda.
- É para onde virámos, sim senhor. Obrigado.
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- Também vem fazer uma "endo-cuspia"?
- Não, minha senhora. Venho fazer um exame com um nome ainda mais esquisito.
- Ah! Eu ando aflita do estômago.
- Pois, cada um com a sua maleita.
- Foi a malvada da minha filha que me trouxe, que eu não posso andar assim por aí.
- Pois...
- Estou a viver em casa dela. Já não me posso valer, sabe. A idade não perdoa. E trabalhei muito em toda a minha vida, lá na terra, a esgaravatar no campo de sol a sol, a mando do meu marido, que descanse lá em baixo, o malvado.
- Lá em baixo?
- No Inferno.
- Conheço.
- Conhece?
- Mais ou menos, de ler.
- Estudou, o senhor?
- Acabaram de me licenciar, veja bem. É preciso vir tratar da saúde para sairmos daqui com vida nova.
- Ah! Eu nunca estudei. Sei escrever o meu nome, e mal. A minha vida foi muito difícil. O meu marido era um malvado. Era muito ciumento e estava sempre agarrado à garrafa. Veja lá que meteu na cabeça que eu o enganava com o irmão dele. Andava sempre desconfiado, o diabo, Deus me perdoe. Sempre à espreita, sempre a seguir-me. Não podia ir para lado nenhum, imagine o senhor. E batia-me. Ah!, eu sofri muito, e continuo a sofrer, agora nas mãos da filha que é igualzinha ao pai.
- Pois...
- Sabe, já tentei matar-me uma porrada de vezes.
- Então?
- Olhe, da infelicidade. O malandro batia-me. Uma vez tentei enforcar-me; já estava com a corda no gasganete mas o diabo chegou a tempo, viu-me e ainda me bateu, veja lá! Uma pessoa quando tem azar até na cama parte as pernas.
- Agora é que disse uma grande verdade, minha senhora. A senhora é uma filósofa. Às vezes não é preciso pensar muito, é preciso viver.
- Pois, pensar para quê?...
- Ora vê, a senhora é quem sabe.
- E olhe que já vivi muito, sempre a penar, infelizmente. Chamaram por Cremilde, não foi? Olhe, lá vou eu para mais uma. Adeus e as suas melhoras.
- Quando souber se quero melhorar, agradeço-lhe, minha senhora.

2 Comments:

Blogger dragão said...

Estes seus diálogos são impagáveis, ó R!...:O)

10:40 da manhã  
Blogger r said...

:o)

3:02 da tarde  

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