Vida e Obra de Um Poeta
"Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aquilo que conseguimos ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interiores e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas experiências, e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda, na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desconhecidos, amigos, inimigos – e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos em relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas – ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra. Avancei muito no conhecimento da divindade, desde o dia em que escrevi um dístico na parede de um urinol de Lisboa até à minha obra-prima (um poema dramático), oferecida com maliciosa ingenuidade a uma prostituta nas docas de Amesterdão (ela não sabia português). Um poema desesperadamente religioso que falava do corpo e da sua magnificência e perenidade.
Comecei a escrever com determinação aos trinta anos, quando corria o bairro des Abbesses, em Paris, para meter-me nalguma casa que tivesse a porta aberta, e ir dormir na retrete. Explico: em Paris, os três filhos de Deus debatiam-se com o árduo problema da dormida. Éramos um português e dois espanhóis, desaparecidos um dia de suas casas, das pátrias, e encontrados no acaso de vadiagens e bebedeiras. Tínhamos assuntos religiosos comuns. Para dormir, havia acidentais quartos de amigos, a entrada do metropolitano e, no bom tempo, as pontes do rio. Mas eu precisava de solidão e conforto (era a obra que, secretamente, se desenvolvia em mim) – e tomei como minha uma ideia que circulava pela cidade. Era possível dormir nas retretes, nas retretes privadas, nas retretes das casas das outras pessoas! A ideia abalou-me tanto que andei confuso e comovido durante dias. Fui ao ponto de escrever um poema inteiramente inspirado nela. Eu e os meus amigos, poucas semanas passadas sobre o início desta nova vida surpreendente, tínhamos já uma lista de cento e vinte e dois prédios onde devíamos tentar a entrada. Simples: estudávamos as portas de determinado bairro residencial, a ver se poderiam ser abertas de um modo qualquer, ou se as deixavam abertas. Chegava a hora do sono alheio, cada um subia até à sua retrete. Uma ascensão! Talvez Deus estivesse lá em cima à nossa espera. Claro que só escolhíamos edifícios antigos, com sentina de patamar para uso comum dos inquilinos. Acendia a luz, instalava-me fechado por dentro, e pensava ou lia, ou escrevia às vezes. Nunca a solidão foi para mim tão fértil. Se alguma pessoa vinha à retrete a meio da noite, eu puxava o autoclismo e saía como inquilino também, natural, desenvolto nos meus direitos. Defecação democrática, por ludíbrio, no seio da grande família burguesa. No dia seguinte reuníamo-nos os três, os filhos de Deus, para falar das nossas aspirações e meditações, da inspiradora solidão nocturna.
Foi assim que me pus a escrever – enquanto esperava a oportunidade de entrar numa casa (numa retrete, digo) ou quando, já nela, começava a pensar, a investigar, a decifrar, entregue e defendido na retrete, na profundidade que eu mesmo transportara ao longo dos anos, mal aflorada por instantes e agora enfim oferecida. O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessara o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim. O rosto anunciava com antecedência a chegada súbita de um sentimento muito agudo e quase doloroso das coisas, sua concordância e relações, a chegada da iluminação. Num dos poemas que deixei em Paris falo disto explicitamente, falo do homem vendo nos próprios olhos a nascente e brilhante imagem do mundo. É um bom poema em que trabalhei quinze noites seguidas, sempre sentado numa retrete da rue des Abbesses.
Outro princípio fulcral na minha poesia – o da Fêmaea-Mãe – foi descoberto, imaginado, organizado e assumido na mesma retrete. Devo muito a essa retrete. Certas noites dava uma volta por Pigalle e estudava miudamente os cartazes nas casas de stip-tease. Absorvia a nudez retratada das actrizes como se absorvesse um plasma forte. Elas eram intérpretes de Deua. Via nesses corpos uma declaração divina, e o jogo espectacular do que chamam vícios era uma espécie de escrita manifesta, uma alusiva visibilização de Deus. E tudo isso me era dado como um caminho de conhecimento, uma complexa viabilidade. Todas as putas de pigalle eram minhas mães; a carne fotografada, tornada viva em mim pelo enredo da comoção, era a carne-mãe e amparava-me na descoberta e, posteriormente, na magnificação e glorificação do mundo.
Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me reparte o tempo. Abro-me à unidade da vida – e amo o passado e o futuro com um só fervor: completo. A geografia não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturidade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício – a ferocidade dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris – só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.
E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno. "
Comecei a escrever com determinação aos trinta anos, quando corria o bairro des Abbesses, em Paris, para meter-me nalguma casa que tivesse a porta aberta, e ir dormir na retrete. Explico: em Paris, os três filhos de Deus debatiam-se com o árduo problema da dormida. Éramos um português e dois espanhóis, desaparecidos um dia de suas casas, das pátrias, e encontrados no acaso de vadiagens e bebedeiras. Tínhamos assuntos religiosos comuns. Para dormir, havia acidentais quartos de amigos, a entrada do metropolitano e, no bom tempo, as pontes do rio. Mas eu precisava de solidão e conforto (era a obra que, secretamente, se desenvolvia em mim) – e tomei como minha uma ideia que circulava pela cidade. Era possível dormir nas retretes, nas retretes privadas, nas retretes das casas das outras pessoas! A ideia abalou-me tanto que andei confuso e comovido durante dias. Fui ao ponto de escrever um poema inteiramente inspirado nela. Eu e os meus amigos, poucas semanas passadas sobre o início desta nova vida surpreendente, tínhamos já uma lista de cento e vinte e dois prédios onde devíamos tentar a entrada. Simples: estudávamos as portas de determinado bairro residencial, a ver se poderiam ser abertas de um modo qualquer, ou se as deixavam abertas. Chegava a hora do sono alheio, cada um subia até à sua retrete. Uma ascensão! Talvez Deus estivesse lá em cima à nossa espera. Claro que só escolhíamos edifícios antigos, com sentina de patamar para uso comum dos inquilinos. Acendia a luz, instalava-me fechado por dentro, e pensava ou lia, ou escrevia às vezes. Nunca a solidão foi para mim tão fértil. Se alguma pessoa vinha à retrete a meio da noite, eu puxava o autoclismo e saía como inquilino também, natural, desenvolto nos meus direitos. Defecação democrática, por ludíbrio, no seio da grande família burguesa. No dia seguinte reuníamo-nos os três, os filhos de Deus, para falar das nossas aspirações e meditações, da inspiradora solidão nocturna.
Foi assim que me pus a escrever – enquanto esperava a oportunidade de entrar numa casa (numa retrete, digo) ou quando, já nela, começava a pensar, a investigar, a decifrar, entregue e defendido na retrete, na profundidade que eu mesmo transportara ao longo dos anos, mal aflorada por instantes e agora enfim oferecida. O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessara o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim. O rosto anunciava com antecedência a chegada súbita de um sentimento muito agudo e quase doloroso das coisas, sua concordância e relações, a chegada da iluminação. Num dos poemas que deixei em Paris falo disto explicitamente, falo do homem vendo nos próprios olhos a nascente e brilhante imagem do mundo. É um bom poema em que trabalhei quinze noites seguidas, sempre sentado numa retrete da rue des Abbesses.
Outro princípio fulcral na minha poesia – o da Fêmaea-Mãe – foi descoberto, imaginado, organizado e assumido na mesma retrete. Devo muito a essa retrete. Certas noites dava uma volta por Pigalle e estudava miudamente os cartazes nas casas de stip-tease. Absorvia a nudez retratada das actrizes como se absorvesse um plasma forte. Elas eram intérpretes de Deua. Via nesses corpos uma declaração divina, e o jogo espectacular do que chamam vícios era uma espécie de escrita manifesta, uma alusiva visibilização de Deus. E tudo isso me era dado como um caminho de conhecimento, uma complexa viabilidade. Todas as putas de pigalle eram minhas mães; a carne fotografada, tornada viva em mim pelo enredo da comoção, era a carne-mãe e amparava-me na descoberta e, posteriormente, na magnificação e glorificação do mundo.
Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me reparte o tempo. Abro-me à unidade da vida – e amo o passado e o futuro com um só fervor: completo. A geografia não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturidade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício – a ferocidade dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris – só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.
E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno. "
Herberto Helder, Os Passos em Volta
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