5.5.05

Diálogos de Morte # 9

Amigos leitores,
Lembram-se do homem a quem apareceu qualquer coisa no céu-da-boca? Pois bem: há novidades. Serão cantadas pelo doente e a doutora, ela que se pronunciará em itálico.
- Então, como está?
- A treinar para falar como um ventríloquo, sem abrir esta boca de duas campainhas.
- Deixe cá ver. De facto, já se nota.
- Já se nota?! É um horrível apêndice de se lhe tirar o chapéu. Não há quem o não note. Se me descuido a sorrir em frente de alguém, começam logo com as suas cabecitas de catatuas a pender para um dos lados, à espera que o cérebro reconheça o que os olhos vêem.
- Não é assim tão estranho.
- Diga-me o nome e a morada de um outro ser com esta coisa não-estranha e eu formo já a associação dos amigos das duas campainhas em uma boca só.
- Há coisas piores.
- Tem razão, há coisas bem piores, mas em nós qualquer coisa vulgar atinge a gravidade que aos olhos doutrem, de campainha única no sítio devido, parece ser insignificante. De mais a mais não há certeza de que esta presumível campainha esteja fora desse mundo das coisas piores.
- Tem dores?
- Não, dores não tenho. Aliás, os comprimidos que me receitou parece que impulsionaram o crescimento desta carranha como aos suínos aparece. E é incómodo, muito incómodo. A língua está sempre a roçar neste estranho pedaço de carne, como se fosse um verme viscoso. A comida enrola-se no verme ao ponto de não saber ao certo o que como… e dificulta-me a mastigação. E já me custa falar. As palavras enrolam-se, a dicção já não é a mesma, a língua toca na campainha e os sons ficam presos…
- E os efeitos secundários?
- Efeitos secundários?
- Dos comprimidos!
- Pruridos por todo o corpinho, senhora doutora, como se a sarna se me entranhasse na pele. Até a campainha parece querer vibrar.
- Tenha calma. Só para a morte não há remédio.
- Que se pode fazer a isto?
- Vamos estudar a situação, avaliá-la para se tomar a melhor solução.
- Tem ideia do nome desse tal melhor?
- Ainda não. Talvez cirurgia, se for aconselhável, caso outra opção não se revele mais indicada. Mas olhe que tem aí uma úvula perfeitinha.
- Uma anomalia perfeita! Se isto faz algum sentido… ainda por cima com esse nome técnico tão sugestivo, mesmo a pedir os mais fantasiosos trocadilhos. Por alguma razão Deus não nos criou com duas coisas destas plantadas no céu-da-boca.
- É crente, Sr. M.?
- Já não sei, senhora doutora. Não sei em que crer. Acreditar no Bem ou no Mal? Quis Ele que isto me aparecesse? Porquê? Quer Ele me punir? Que fiz? Antes disto já acreditava pouco em muitas coisas, agora estou ainda mais confuso. Só vejo o Deus punitivo.
- Vejo que está um pouco perturbado. Se calhar é melhor marcar uma consulta com um psiquiatra ou com um psicólogo enquanto se desenrola este processo.
- Quero lá saber dessa classe de ouvintes, doutora!
- Acho que lhe fazia bem.
- Não duvido. Adormecido pelas drogas, com certeza que via na segunda úvula como carinhosamente lhe chama, uma invejável bênção.
- Tenha calma. Não é assim tão grave.
- Vamos acreditar que não é grave uma coisa sem nome certo nem registo na ciência.
- Vai fazer estes exames para vermos mais pormenorizadamente o que aí tem.
- Exames? E, entretanto, em que pensar? Que tenho uma úvula quase a beijar os dentes?
- Parece-me bem, mas em tom de suspeita: talvez seja…
- Olhe, quer saber? Não faço eu exame algum. Não sabe o nome desta perfeita anomalia, não é assim? Pois muito bem, se é perfeita, hei-de andar por aí passeando a aberração. Passe bem.