7.7.05

"Transparência/Segredo"

"Muita gente ambiciona que o espectáculo das suas vidas seja transmitido pelos media, talvez porque assim o pode fazer chegar às suas plateias ocultas. No entanto, a sociedade mediática e comunicacional está a colocar imensos problemas às pessoas. Transparência é a nova palavra de ordem, e nada tenho contra isso. Mas quem tem o poder, nomeadamente o Estado e as empresas privadas, sabe bem que «o segredo é a alma do negócio», diria eu, a fonte do poder. Vai daí, defendem a ferro e fogo os seus segredos: segredo de Estado, sigilo bancário, segredo judicial, segredo médico, nunca vimos tanta defesa de segredos institucionais, quando o espaço público e institucional deveria ser o mais transparente. Quanto ao segredo das pessoas, nomeadamente da sua mais íntima privacidade, nunca vimos tantas violações e tão pouca defesa contra elas. O Big Brother, e suas variantes, estão por todo o lado.
Se isto continuar assim, vamos assistir ao fim de autonomia de cada indivíduo. Os valores da sociedade ocidental baseiam-se na defesa desta autonomia, mas é a própria sociedade ocidental consumista e mediatizada que a está a destruir. Enquanto se mantiver o segredo (o poder) das chamadas empresas privadas, bem se percebe o interesse delas: transformar cada pessoa num elemento manipulado e sem espaço de autonomia nem crítica. Ou se mantém, sem espaço de liberdade, no sistema produtor-consumista, gerando os lucros das suas organizações, ou se marginaliza em ambientes onde o esperam grandes provações e novas manipulações, desta vez mais selvagens ainda.
Se o leitor não sabe defender os seus segredos e quer um conselho secreto, ele aí está: não vá nessa da «transparência». A emancipação do Homem sempre se baseou na existência de vários espaços bem delimitados entre si. Em primeiro lugar, temos o espaço público, partilhado por todos, que é hoje (deveria ser) transparentemente veiculado pelos mass media. Em segundo lugar, temos os vários espaços privados. Admitimos que o das empresas privadas seja um deles… mas que dizer do espaço familiar e das diferentes relações íntimas e de cumplicidade que se estabelecem ao longo da vida? A mútua partilha de segredos é a fonte destes relacionamentos e, uma vez transgredida, lá se vai o relacionamento e o espaço de liberdade que ele suportava. Se o leitor, por exemplo, entregar os seus segredos a outra pessoa e não receber os dela em troca, fica nas mãos dela. É o que acontece entre filhos e pais e, talvez, na relação com um médico ou advogado. Mas na relação entre adultos espero bem que isso não aconteça: os segredos devem ser partilhados para o poder ficar equilibrado. Desconfie de quem quer saber sobre si e não lhe conta nada em troca. Muitas pessoas que fazem isso estão a coleccionar peças de poder. Mas também é isso que fazem as empresas privadas que têm a sua ficha individual organizada nos seus bancos de dados.
Finalmente, existe outro espaço que você deve manter, tanto quanto possível, inviolado: é o espaço da sua fantasia. Se deixar que lhe adivinhem os pensamentos, lá se vai a liberdade que lhe resta. Fica de tal modo paralisado, que já nem sequer conseguirá pensar. É esse o grande drama dos esquizofrénicos e, a não ser que opte por essa patologia, não lhe desejo essa sorte. Pelo contrário, são a fantasia e o sonho que nos fazem viver, às vezes contra as adversidades circunstanciais. Por isso, guarde bem esse tesouro. Pode partilhar um pouco com algumas pessoas chegadas, mas guarde sempre algo para si. Se sentir tudo isso muito pesado, lembre-se que a arte se alimenta da fantasia, e existe para que nos possamos esconder enquanto a mostramos.
(…)
Resta-lhe a subtileza das palavras. É com as palavras que construímos os nossos mundos, é com elas que esgrimimos, que nos defendemos e atacamos (ou nos atacam). Cada contexto da vida tem o seu discurso próprio, que temos de respeitar nas suas linhas gerais. Mas as palavras também nos pertencem, e é com elas que nos construímos. São as nossas palavras que, em cada momento, temos de filtrar cuidadosamente, deixando sair algumas e reservando outras para nós. De resto, também as palavras mostram e escondem simultaneamente, já que nunca nos exprimem na perfeição. Este jogo paradoxal de revelação/omissão ou, se quiser, de verdade/mentira, é inerente às palavras mas difícil de aprender. Se o dominar, use-o em sua defesa.
Aceito que possa ter de omitir ou mentir aos outros, sobretudo quando tentarem invadir o seu espaço pessoal sem que você tenha feito mal a ninguém. Condescendo até que existam assuntos que você não queira saber. Numa sociedade com informação excessiva, parece-me vital saber seleccionar a informação que se adquirir. Mas não se esqueça que está condenado à lucidez. Condenado, sim, porque, se a lucidez é a maior conquista do Homem, ela é também a sua maior tragédia: cada um de nós sabe que há-de morrer. Por isso, evite mentir a si próprio, e não faça como os histriónicos que mentem primeiro a si próprios para se convencerem que são sinceros para os outros."

Assim escreve J. L. Pio Abreu, psiquiatra, no seu livro com o sugestivo nome “Como Tornar-se Doente Mental”. O excerto que aqui trouxemos insere-se no sétimo e último capítulo: “Como não ser doente mental”.

4 Comments:

Blogger MG said...

No "Fala Barato" também tento lutar contra a sociedade de consumo, contra a sociedade de entretenimento... Fico contente por ver que o Sr. Rato também participa nesta luta desesperada... contra um mundo parecido ao Melhor dos Mundos de Huxley ou o 1984 de Orwell.

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