6.8.05

Segundo Passo Para Um Fim

(...) "A minha ratazana de Natal. Que outro nome lhe dar? Com os dedos rosados de firmes articulações que seguram a avelã, a amêndoa ou a comida prensada especial para ratos. Receando, ao princípio, pelas pontas dos meus dedos, comecei a mimá-la; com passas, bocadinhos de queijo, gema de ovo.
Instalei-a ao meu lado. As suas vibrissas captam-me. Brinca com os meus dedos, que estão ao seu alcance. Falo com ela. Ao princípio, de planos em que não entram ratazanas, como se pudesse acontecer algo no futuro em que elas não entrassem, como se a Rata pudesse não estar cá quando o mar ousar apenas ondas pequenas, a floresta morrer por causa do homem ou, porventura, um homenzinho corcunda se fizer à estrada.
Ultimamente tenho sonhado com ela: chatices escolares, insatisfação da carne, tudo o que no sonho se insinua das vidas em que estou metido; os meus sonhos diurnos, os meus sonhos nocturnos são o seu território privativo. Não há embrulhada em que ela, com o seu rabo pelado, não dê forma. Marcou tudo com o seu cheiro. Seja o que for que lhe oponha – mentiras do tamanho de um armário e com fundos falsos -, ela rói tudo. O seu constante dente, a sua arrogância de rata sábia. Já não sou eu que falo, mas ela que me faz discursos.
Basta, diz. Vós já não existis. Sois do passado, uma fantasia que nós recordamos. Já não sois vós quem marca a data. Apagastes todas as perspectivas. Gastastes todos os cartuxos. Quase de uma vez só. Já era tempo!
No futuro, só ratazanas. Poucas ao princípio, porque a vida acabou quase toda, mas já a Rata se multiplica enquanto narra o nosso fim. Ora entoa, lastimosa, em voz de falsete, como se quisesse ensinar às novas ninhadas a chorar a nossa perda, ora escarnece em língua de rato, como se o seu ódio ainda tivesse poder sobre nós: acabastes, acabastes!
No entanto, objecto-lhe: Não, Rata, não! Ainda somos numerosos. Pontualmente, os noticiários dão conta dos nossos actos. Os planos que fazemos são subtis e, com toda a probabilidade, resultam. Pelo menos, a médio prazo, ainda cá estamos. Mesmo aquele homenzinho corcunda que se quer novamente intrometer, ainda há pouco, quando eu ia a descer as escadas da cave para ver como estão as maçãs de Inverno, disse que pode ser que seja o fim do homem, mas, no fundo, somos nós quem, em última análise, determina quando se fecha a loja.
(...)
Clama, que até faz eco: - No princípio era a proibição! Pois quando o Deus dos homens disse, vociferando de raiva: Quero mandar sobre a Terra um dilúvio de água para dar cabo de toda a carne onde haja um sopro de vida, foi-nos expressamente proibido entrar a bordo. Não nos deixaram passar quando Noé transformou a sua arca num zoo, se bem que o seu Deus castigador, em cujas graças ele caíra, tenha claramente dito lá do alto: de todo o animal limpo tomarás para ti sete e sete, o macho e a sua fêmea, pois que farei chover sobre a Terra quarenta dias e quarenta noites e apagar da face da Terra todos os seres que fiz. Pois arrependo-me da minha obra.
E Noé fez o que o seu Deus lhe mandava e tomou das aves segundo a sua espécie, dos animais segundo a sua espécie e de todos os vermes da terra segundo a sua espécie; apenas das criaturas como nós não quis nenhum casal, nem o ratazano nem a ratazana, na sua casca de noz. Limpos ou não limpos, para ele não éramos nem uma coisa nem outra. Assim, cedo ganhou corpo o preconceito. Desde o início, o ódio e o desejo de ver aniquilado aquilo que faz engulhos na garganta e dá vontade de vomitar. O nojo inato que inspiramos ao homem impediu Noé de agir segundo a estrita palavra do seu Deus. Negou-nos, riscou-nos da sua lista, onde se nomeava tudo quanto respira.
Baratas, aranhas negras, o verme que se contorce, até o piolho e o sapo pustulento, as moscas varejeiras de corpo metalizado, levou de tudo, um casal de cada, para a sua arca, mas exceptuou-nos a nós. Devíamos perecer como a restante humanidade numerosa e corrupta, da qual dissera o Todo-Poderoso, o Deus sempre vindicativo e maldizente da sua própria incompetência: grande era a maldade do homem na Terra e maus os desígnios e os desejos do seu coração.
Depois fez chover durante quarenta dias e quarenta noites, até tudo ficar coberto de água, flutuando apenas a arca e o seu conteúdo. Mas, quando as águas baixaram e emergiram da cheia os primeiros cumes das montanhas, depois do corvo que fora solto, regressou a pomba, da qual se diz: Ela voltou para ele à hora da véspera e, vede, trazia no bico uma folha de oliveira. Só que não foi com uma folha verde, mas com a notícia espantosa que a pomba voltou para Noé: ela tinha visto, onde já nada mais rastejava ou voava, caganitas, caganitas de ratazana frescas.
Então, aborrecido com a sua azelhice, Deus riu-se por ver que a desobediência de Noé nada pudera contra a nossa resistência vital. Disse, como sempre de cima para baixo: Sejam o ratazano e a ratazana, daqui em diante, companheiros do homem na Terra e portadores de todas as pragas prometidas…
Disse mais coisas que não estão escritas. Inoculou-nos a peste e, à maneira dos todo-poderosos, caiu no engano d’alma de se julgar mais todo-poderoso ainda. Na sua mão de Deus ficara em segurança um casal da espécie não-limpa. Na divina mão tinha a pomba enviada por Noé visto as caganitas frescas de ratazanas. À divina manápula deve a nossa espécie a sua incontável sobrevivência, pois na palma da mão de Deus gerámos crias, nove, após o que a ninhada, enquanto as águas cobriram a terra durante cento e cinquenta dias, se desenvolveu até ser uma população rática, tão espaçosa é a mão de Deus Todo-poderoso.
A seguir a este discurso, Noé guardou um silêncio ressentido, como era seu hábito desde muito novo. Mas quando a arca larga e chata bateu no fundo no Monte Ararat, tínhamos nós já ocupado o território deserto; pois tínhamos escapado ao dilúvio não na mão de Deus, mas em galerias subterrâneas obturadas com animais velhos e transformadas em câmaras de ar de salvamento. Nós, as do rabo grande! Nós, que captamos tudo com bigodes! Nós, as dos dentes que crescem continuamente! Nós, apertadas notas de rodapé do homem, seu comentário pululante. Nós, indestrutíveis!
Passado pouco tempo, povoámos já a casca de noz de Noé. Nenhuma medida preventiva adiantou: o que ele comia também nós comíamos. O nosso número aumentou mais rapidamente do que era possível aos homens de Noé e aos seus animais seleccionados. Nunca mais a espécie humana se viu livre de nós.
Então Noé, fingindo humildade perante o seu Deus, mas não obstante pondo-se no seu lugar, disse: Obstinado foi o meu coração por não ter seguido a palavra de Deus. Mesmo assim, por vontade do Todo-Poderoso, a ratazana sobreviveu connosco, sobre a Terra. Sombra do homem, condenada seja a revolver a imundície.
Isto cumpriu-se, disse a Rata com que sonho. Qualquer sítio que o homem abandonasse, dele ficava o lixo. Mesmo quando lançado no encalço da verdade última e do seu Deus – quase a bater nos calcanhares de Deus -, o homem produz lixo. Pôde-se, sempre, reconhecer o homem pelo lixo que deixa, estratificado em camadas; pois, mais do que o homem, duram os seus dejectos. Só o lixo lhe sobreviveu!"
Günter Grass, A Ratazana