20.10.04

PROSA INSANA # 4

Anos e anos com as putas das insónias às costas. Não me largam. Não dão tréguas. Anos a tentar descobrir as causas deste mal. Anos a fio levados a mitigar as suas consequências. Anos a tentar combatê-la com mezinhas e chás das vizinhas, com valerianas e tisanas de marijuanas, com panaceias em drageias... E elas, as putas, estóicas, ganhando a luta pelo sono. Mas isto vai acabar porque a culpa é - sei-o imprecisamente - do livro de cabeceira. "O Livro do Desassossego" que repousa ao lado do catre doente, com umas páginas lidas e relidas, com todas as outras por desfrutar. É essa a simbólica mãe de todas as preocupações: sem ler o desassossego do Pessoa, não sossego eu. Mas nunca me sinto preparado para tal, tal qual nunca me sinto preparado para tantas outras coisas, nem mesmo para combater a insónia até a matar de vez, ela, a puta que é simultaneamente filha e mãe do mesmo mal: a preocupação funda da preguiça mortal, que, sendo pecado, faz mal. Faz ela e faço eu que não a degolo a cada minuto do tempo porque ela, a preguiça, esperta como um rato, vem sussurrar na minha, essa sim, dormente, consciência:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

LIBERDADE, de FERNANDO PESSOA