20.4.05

Diálogos de Morte # 7

- O senhor desculpe, mas eu conheço-o de algum lado.
- Deveras que abismo! Olhando para o seu figurino, e assim de repente, falta-me memória para reconhecê-lo. Mas posso saber quem me conhece?
- O meu nome é M..
- Que curioso! A minha graça também é M., MA.
- M.A.? Então é isso. É mesmo você. Andámos juntos na escola.
- Na escola, diz o senhor. Que escola?
- Na escola primária.
- Então é natural que não esteja a vê-lo, salvo seja! Na minha memória entrei directamente para a secundária.
- É você, é. Eu lembro-me de si. Se calhar pela coincidência de termos o mesmo nome. Você era aquele que arrancava as torneiras dos lavatórios.
- Deveras? Não estou em mim, Senhor. De facto é capaz de ter alguma razão: sempre tive uma tara pela limpeza.
- Está bom?
- Só estou.
- Bolas, que acaso. Qual foi o seu percurso? O que faz?
- Sou doente.
- Isso é que é pior.
- Não se compadeça. Creio que as portas da eternidade ainda permanecerão fechadas por mais uns tempos.
- E profissionalmente?
- Deixe-me ver… profissional – mente… Sou ilusionista.
- Ilusionista?
- Crio ilusões. É um mundo de arrepiar. E o senhor, já na primária pensava em engravatar-se na madureza da idade?
- Como disse?
- Em tom cordato, disse: Então e o senhor, que ganha-pão exerce? Seria de uma indelicadeza sem nome não retribuir a sua inquietante questão. E pela gravata vejo que seguiu alta escola! É dos doutores?
- Sou advogado.
- Diabo! Um advogado? E aspira política?
- Não estou a perceber.
- Não estou a explicar. Desejo perguntar se aspira a uma carreira política.
- Também estou filiado num partido, sim.
- Abismo!
- Abismo?
- Estou deveras abismado! Quer dizer que na vida adulta continuamos colegas, salvo seja!
- Então?
- Então: Profissional – mente: político. Profissional - mente: ilusionista. Ambos criamos ilusões, ambos alimentando e alimentados pelo povo. E é um percurso, sim senhor, camarada. É camarada?
- Como?
- Que lado da política abraça vossa excelência? Atira-se para a direita ou para a esquerda?
- A minha ideologia é de direita.
- É político dextro, o camarada. Não o ofendo, não?
- Ofender-me?
- Tratando-o por camarada.
- Está no seu direito.
- Ah!, a patranha da Democracia! Vejo que a excelência sabe a cartilha. E com a memória que aparenta ter, decerto não lambeu o mesmo ano segunda vez. Mas diga lá da sua justiça. Gosta dele?
- De quem?
- Do povo, camarada político dextro. Se gosta do povo: com ele quer fazer vida.
- Não é com ele, é por ele.
- Desculpe esta ligeira confusão. Como diz o bom povo: a Língua Portuguesa sofre de traição.
- Não é bem isso que se diz.
- Neste encantador país, caro colega político, diz-se de tudo, e não me doa a mim a cabeça sempre que ouço por aí "coisas que não são bem assim". Mas diga lá coisas certas das suas profissões, que escalda o meu ouvido, atentíssimo e ansioso por o ouvir. Afinal de contas, se julgo bem, é raríssimo um político tropeçar num cidadão comum fora do arraial eleitoral, apertar-lhe a mão e, dos cinco dedos, escolher dois dedos para a conversa. E sinto-me um privilegiado, em êxtase! Por nada quero perder este inusitado encontro.
- Gosto de ajudar o próximo! Servir a pátria! E acho que hoje em dia, infelizmente, não se dá a devida importância ao nosso labor, à nossa função na sociedade. Confunde-se tudo. E também acho que todos deviam interessar-se por política. Não se interessa?
- Então não me interesso!?... Ora essa! Mas digo-lhe uma coisa: faço um esforço hercúleo para ver o fundo ao tacho.
- Está a desconversar?
- Ora essa! Apimento o nosso saboroso diálogo com uma pitada de sinceridade, excelência! E de mais a mais gosto de um tachinho, cheio e de boa cozedura.
- Está a desconversar. Adeus.
- A Deus, a Deus, ó político. E lembre-se (espere aí, demonstre mais fibra, homem!) Então pica-se com a fina agulha por tão pequena palha? Agarrem-no, povo! Agarrem-no que é político "escorregadio"!