18.6.05

Diálogos de Morte # 12

Caríssimos leitores,
Quiçá ainda mais desconcertantes, regressam os "Diálogos de Morte", esse desafiador espaço impróprio para pessoas menos apreciadoras do bom sumo da palavra. Estamos, está fácil de ver, em fase ainda mais alucinada, com ponta de pueril arrogância, que mesmo assim, nesse luminoso estado de ingenuidade, não deixa de ser veneno desprezível, mas que sempre apimenta a alma, quando a doença - e há tanta por tanto lado - anda à solta. E por falar nela, na doença, apresentamos os protagonistas de hoje: uma donzela com medo, protegida por um doente sem ele. Porque o medo faz tremer, falará ela em itálico. Ele, com letra hirta, falará como entende ser normal.

- O senhor desculpe-me, mas posso pedir-lhe um favor?
- Pedir, minha senhora? Que pretende a donzela deste seu escravo?
- Sabe… é que eu tenho receio de andar por aí sozinha. Os assaltos têm sido mais que muitos. De modo que… se não se importar…
- E até onde deseja que eu a guarde, protegendo-a do seu medo neste breu?
- Eu moro já ali, naquele bairro.
- Mal ou bem afamado, se a indiscrição não a insulta?
- Como assim?
- Assim: há zaragatas a toda a hora; ou só de quando em vez?
- O problema é o caminho até lá.
- É sempre assim, minha doce donzela: o problema está sempre no caminho – por onde seguir, afinal?, tirante as vezes em que o problema já está a caminho e a gente, ignorando a sorrateira aproximação, caminha para a caminha de braço dado com a fictícia segurança, a leste como por aí se diz, pensando que irá entrar no paraíso que não existe, e a milhas de pensar em funestos desfechos, quiçá perpetrados por alguém muito próximo e à traição, com uma valente facada pelas costas.
- Nos dias que correm tenho medo.
- E tenha, minha amiga. Ter medo ajuda e faz crescer. Tenha medo, até nos dias, digamos, mais amenos, quando a calmaria parece matar toda a maldade. Mas não se fique por aí. Tenha medo, sim, mas mate-o. Hoje achou este escravo seu para lhe matar o medo, mas amanhã pode encontrar uma "Alteza" que lhe cheirando a medo, a mata a si.
- Credo! Com essa conversa já estou arrependida: O senhor está meter-me medo.
- Já lhe disse: ter medo faz bem, desde que o consiga vencer.
- E ele não morde?
- O medo?
- Não! Esse cão.
- Oh, não, coitado! É um pobre diabo. É o Espírito.
- Espírito?
- É a graça com que me ocorreu baptizá-lo, salvo seja.
- Como?
- Repare neste absurdo: sem falar, imagine - sem falar!, pediu-me protecção, tal como a senhora fez, com a diferença da senhora se armar de palavras, e eu, por ser péssimo em nomes, chamei-lhe, a ele, claro está, de Espírito, que foi a primeira imprecisa impressão que me deu o seu focinho de pedinte. Como as pessoas, também um cão deve ter graça, não acha?
- Graça?
- Um nome, mesmo sem passar pelo ritual de baptismo, minha querida donzela. E já agora da "outra graça", também. Nada pior do que um ser desengraçado, que curiosamente rima com desgraçado, sem que no entanto queira esta rima insinuar verdade alguma.
- Desculpe perguntar-lhe, mas… está bem?
- Estou sempre bem: sou doente.
- Isso não faz lá muito sentido…
- Digamos que é tão irracional como algum medo.
- Mas sofre de quê?
- De ver o mundo, minha donzela. É o bastante para me infernizar a saúde.
- Então precisa de ajuda!...
- Tenho o meu espírito, minha senhora: médico e coveiro num só.
- Mas se calhar devia procurar outras pessoas… Temos que nos ajudar uns aos outros. Não estamos cá para outra coisa.
- Minha donzela, apesar da sua cara de expressão certa, não estou eu tão certo disso. Mais depressa se vê o preto do que o branco neste desconcertante claro-escuro. E o seu lar: já o vê?
- É aqui mesmo. Muito obrigada.
- Faça-me a fineza: nada de agradecimentos. Foi com desmedido gozo que matei o seu medo. Pelo menos nesta prazenteira caminhada nocturna. Nestas alturas é que tenho pena de ter renegado a viagem a reboque do progresso.
- Perdão?
- Está perdoada, boa alma. E espero que também a mim me perdoe.
- Porquê?
- Por não ter aderido a essa coisa do telefone, inviabilizando assim um futuro contacto, pelo menos sonoro, entre o seu castelo e a minha barraca.
- Não tem telemóvel?!...
- Que expressão de horror, minha donzela! Até os seus agradáveis modos se tornaram sapudos! Estarei eu de costas viradas a alguma "lei"?
- Não… mas é estranho. Toda a gente tem.
- Já vê: não tendo eu o que toda a gente tem, não sendo eu o que toda a gente é, torna-se mais fácil perceber o meu enfermiço estado. Ou discorda?
- Hum… não sei…
- Sei eu, que sinto e cheiro a doença. E deixe-me que lhe diga: cuide-se, que em si já se nota um cheirinho a ela. Mas fique descansada: pode ser a pior doença, a que já se cheira para os seus lados, mas é a mais comum, a que toda a gente tem; e sendo a que toda a gente tem, viverá bem, presumo eu ...

1 Comments:

Blogger dragão said...

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1:01 da tarde  

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