4.12.04

A quantas andas, homem?

Porque:
Não querer dizer, não saber o que queremos dizer, não poder acreditar no que queremos dizer, e no entanto dizer, ou quase, eis o que importa não perder de vista, no calor da escrita*:
Julgo que nunca soube a quantas andava. Há muito que não sei quem sou, se é que algum dia o soube. Assim como não sei por onde viajei todos estes anos, sem nome, sem bagagem e sem pertença, arrastando o corpo cansado na névoa do tempo. Sei que tenho estes farrapos andrajosos porque os vejo e os sinto sobre a pele fria mas não sei onde os arranjei. Sei que me alimento porque vivo, mas não sei do que sobrevivo. Sei que a barba me escorre, desgrenhada, por este queixo a baixo porque a sinto, áspera e velha. Mas não sei como cheguei a este fim do mundo, como perdi os sentidos e alguém os acordou à bofetada, gritando: É ele, é ele. Foi ele, acusam-me, que roubou não sei o quê, que tentou fugir não sei de quem nem para onde. Foi ele, acusam-me, que matou não sei quem. Um homem, dizem-me, encontrado com a cabeça esmagada. Fui eu, acusam-me, que, num acto bárbaro, pus a descoberto os miolos daquele homem. Mostram-me fotografias do morto. Ele parece sorrir, digo eu. Sorri, filho da puta? É a única coisa que tens a dizer? Sim, digo eu. Confessas? Não confesso o que não sei, digo eu. Só tu não sabes. Não sabes que andas a roubar por aí qual cão esfaimado? Que matas por comida? Que és um filho da puta dum pária a abater? Olha para este espelho, ordenam eles. Que vês? Um bicho, digo eu. Que nome tem? Homem, acho eu.
*Samuel Beckett, Molloy

1 Comments:

Blogger Patrícia said...

FORTE, INTENSO, HUMANO... Gostei!

10:44 da tarde  

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