30.3.05

Pobres Ratos; Pobres Humanos

29.3.05


Depero Fortunato - Flora e Fauna Magica (1920)

24.3.05

Foi esta toca visitada pela vilanagem virulenta carregadinha de instintos maus que quase perigou a vida da máquina que serve de veículo para entrar em contacto convosco. Aos poucos colam-se os cacos que ficaram, recupera-se alguma da energia consumida pelo inútil desânimo e carregam-se baterias em discos, para voltar - assim espero - às lides neste espaço; novamente com governo, embora com pouco material por onde aplicar a meritória actividade de gestão. É esta, com certeza, uma toca portuguesa.

15.3.05

Diálogos de Morte # 6

Uma boa alma que em itálico fala com o "nosso amigo"...

- Quer ajuda?
- Ajuda?
- Sim. Está bem? Parece que caiu...
- Estou a descansar.
- Aqui no chão, no meio da rua?
- Não lhe parece bom sítio? Queria que escolhesse um banco, um centro comercial, uma esplanada ou outro lugar mais... civilizado, entre comas?
- Não tenho nada a ver com isso, mas, enfim, só quis ajudá-lo... Está bem, não é verdade?
- Não, não é verdade. Estou pessimamente. Estou de rastos, não vê?
- Disse que estava a descansar.
- Precisamente. Por estar de rastos, com uma depressão que não lembra ao diabo, descanso, que é coisa recomendada para os males de cabeça, ou é esta ideia mentirosa?
- Se não está bem, devia ir a um médico.
- Ah, pois devia!, para acabar de vez com este estado d'alma. Ou então, conhecer um vendedor de órgãos que me trocasse este cérebro por um enrugado de novo. Mas disso, parece-me que não há. Ou existe, cavalheiro?
- Que eu saiba, não existe, não, mas um psiquiatra sempre o ajudava...
- A sua bondade de ouvinte é quase ofensiva. Sinto-me um desgraçado que não tem com quem falar.
- Ora essa!
- Ora esta! Estou aqui a descansar os ossinhos e chega uma alma caridosa, dizendo-me que ainda há gente assente em duas pernas capaz de olhar para o solo e ver que um outro está lá, por terra deitado. O senhor, não sei se sabe, mas acautele-se: é um ser em vias de extinção!
- Não acho nada disso. Se calhar está a ver as coisas assim devido ao seu estado.
- É do meu Estado, sim senhor. O meu e o seu! A culpa é do Estado. É sempre, ou não é assim? Esse filho da mãe é que tem a culpa. Toda. Sempre. Foi ele, precisamente ele, que me mandou, que me deitou nesta rua, obrigando-me a reflectir o fado, sobre a calçada. Eu, que nada fiz, estou inimputável!
- É preciso ter calma.
- É preciso ter alma!
- Não sei o que lhe aconteceu, mas nem sempre as coisas correm bem.
- Claro que não, até há correrias que acabam em morte. Pensava nisso no milagroso instante em que o senhor me interrompeu. Dizia para os meus botões: e se eu corresse para debaixo de um comboio? Mas chegou o senhor, que menos não é do que um santo, ou um "anjo-guarda", à sua maneira, assim à paisana, e logo as velozes asas do pensamento se quebraram.
- O senhor desculpe-me, mas tem dinheiro para consultar um psiquiatra? Acho que lhe fazia bem.
- A sua sensatez é comovente. De facto, nada melhor do que pagar: sentia-me muito melhor se pagasse para ser ouvido. Esta forma gratuita como estamos aqui os dois à conversa no meio da rua é constrangedora. Mas não ignoro a sua pergunta, que não tenho lábia de político, sempre a fugir com o traseiro à seringa jornalística. Tenho dinheiro, sim senhor. Não é por estar a descansar e a pensar na rua...
- Não queria dizer isso...
- Mas disse. E fez muito bem. Estou certo de que o senhor me pagaria uma consulta com um especialista dos miolos, para ele desempanar esta cabeça. E eu muito lhe agradecia. Imagino o preço das drogas precisas para este fim.
- Então consulte um.
- Meu senhor, olhe à sua volta: aqui à sua direita, este belo edifício, está a vê-lo, não está? Esta casa é, precisamente, a casa do senhor Júlio de Matos, um grande quartel-general. Ainda antes do tal pensamento da corrida para a linha-férrea, tinha eu pensado: entro aqui ou sigo para o comboio?
- Desculpe, não sabia que aqui...
- Está mais do que desculpado: está abençoado. Também o senhor já sabe onde fica o hospital dos varridos. Se um dia precisar, não se acanhe, nem tenha medo: a porta da ajuda, no que aos terrenos da cabeça diz respeito, é aqui.
- Mas já decidiu? Vai entrar?
- Ainda é coisa a considerar.
- Não perde nada.
- A questão é se ganho alguma coisa, que perder já é coisa que bem conheço. Olhe o meu juízo? Não lhe parece perdido, assim... fantasma vagueando no ar?
- Não sei: não o conheço.
- Nem eu! O senhor conhece-se?
- Claro!
- Pois no dia em que acordar pela manhã e esse conhecimento lhe parecer escuro, não deite as mãos à cabeça: deite a cabeça nas mãos.
- Desculpe-me, mas o senhor está confuso. Eu vou consigo lá dentro.
- E vamos como? De mão dada? Dos maiores desgostos que guardo, o de nunca ter tido uma ama-seca, é, de longe, o maior. Ou vai dizer que é meu amigo desde a guerra?
- Vou dizer a verdade.
- A verdade... não se meta com essa puta! Diga antes que é meu filho. Quer ser meu filho? Ou ao contrário, tanto me faz. Prefere adoptar-me?
- Vá, venha lá.
- Como seu pai ou como seu filho?
- Como amigo de guerra.
- Cá está: fugiu da verdade - está no bom caminho. E por falar em caminho: siga lá o seu, meu filho.
- E o senhor?
- O Senhor há-de mandar-me fazer qualquer coisa: ou vou de comboio para o céu, ou vou a pé para o paraíso.
- Olhe, faça o melhor para si.
- Que você a mais não é obrigado, não é assim?
- Mas ficava mais descansado se o visse entrar no hospital.
- Cavalheiro, tudo o que desejo é descansá-lo, não tenha a mais miúda dúvida.
- Então, entre.
- E vou entrar, boa alma. Se não estivesse a vê-lo com carne e osso agarrados à língua, diria que o senhor não existe senão na minha deliciosa e salvadora imaginação. Veja como me levanto; veja como caminho; veja como entro no Quartel-general, dando ouvidos a um conselho desconhecido, mas que seja, sempre, o que eu quiser! Não é assim?
- É.
- Assim é, cavalheiro. Siga também você o seu caminho, e que ele não seja... penado. Que a sua vida, ó boa alma, seja sempre um presente, sem veneno.

12.3.05

Em dia de posses, certamente tomadas em digno estado de pose, uma entrada chata, quiçá ousada ou "delirante".

Pela pena de Platão, diz Sócrates:

(…) "as pessoas de bem não querem governar nem pelas riquezas nem pela honra; porque não querem ser tratadas de mercenários, exigindo abertamente o salário da sua função, nem de ladrões, tirando dessa função lucros secretos; também não trabalham pela honra: é que não são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja obrigação e castigo para que aceitem governar – é por isso que tomar o poder de livre vontade, sem que a necessidade a isso obrigue, pode ser considerada vergonha – e o maior castigo consiste em ser governado por alguém ainda pior do que nós, quando não queremos ser nós a governar; com este medo parecem agir, quando governam, as pessoas honradas e então vão para o poder não como para um bem, para o gozarem, mas como uma tarefa necessária, que não podem confiar a melhores que elas nem a iguais. Se aparecesse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para escapar ao poder, como agora se luta para o obter, e tornar-se-ia evidente que o governante autêntico não é feito, na realidade, para procurar a sua própria vantagem, mas a do governado; de modo que todo o homem sensato preferiria ser obrigado por outro do que preocupar-se em obrigar outros." (...)

Em "A República"

Nota: Sublinhados arranjados aqui na toca.


11.3.05


Veja bem: clique! E aumente.

9.3.05

(Mas que raio? Então esta porcaria agora não me deixa aqui postar umas fotos? Tanto trabalho, tanta dor de cabeça e...)

Caríssimos leitores,

Problemas técnicos impedem que à nossa vista salte o selo com o qual, por norma,, damos as boas-vindas ao "Diálogos de Morte".

Uma senhora em itálico e um senhor do itálico dispensado apresentam-se já de seguida, debaixo de uma cruz que, embora oculto, contém os seguintes dizeres: "Diálogos de Morte #5".


- Desculpe, o senhor é o último da fila?
- Não, minha senhora. Estou em último lugar, sim, mas na bicha.
- Ai, isso já não se diz!
- Ora essa, por que raio?
- Então, bicha é...
- Bicha é onde estamos, minha senhora. E por mero acaso, não espero autocarro algum que me leve de carreira ao destino.
- Então o que faz aqui?
- Observo esta maravilhosa civilização, minha senhora. Encanta-me esta incrível espécie humana.
- Não tem mais nada que fazer? Está a ocupar um lugar!
- É um divertimento meu, minha senhora, ou será que estou a atropelar uma lei? Da decência!?
- Está a ocupar um lugar. Os transportes nunca chegam a horas, e se há gente a ocupar um lugar sem...
- Oh, minha senhora, descanse a sua cabeça que me parece (desculpe a ousadia) fresca e irritadiça: eu pouco ocupo.
- Se quer observar, vá para um jardim! Acha bem? Estar aqui, sem propósito?
- Não é sem propósito; é de propósito. Gosto de ver as pessoas pela manhãzinha, depois de despertarem, mas ainda com o cérebro conservado em sono, ou em sonho que são aquelas que mais me excitam.
- Desande mas é daqui! Se não faz nada, deixe os outros que trabalham.
- Ora essa, se não faço nada, forçosamente faço alguma coisa: é matemático! E, de mais a mais, quem lhe diz que não trabalho? Quem lhe diz que neste preciso instante não estou em plena labuta, a exercer a minha meritória função, mergulhado nesta curiosa massa de vivos?
- O senhor não é bom da cabeça.
- Nem do corpo, se quiser estar mais e melhor informada a meu respeito, esta singular silhueta que os seus belos olhos mar têm a graça de observar.
- Olhe também eu não!
- Também não?
- Também sou doente.
- Oh, minha senhora, mas quem não é? E dê graças a Deus por Ele lhe fazer ver isso.
- Como?
- Saber-se doente. Há muitos que são, e, coitados, vivem numa aflitiva ignorância, sem desconfiarem da enfermidade que os invade, que os corrói, de manso, sub-repticiamente. Mas já agora, faz a fineza de me presentear com o nome da sua enfermidade?
- O que é que está "p'raí" a dizer?
- De que doença padece, minha senhora? Quer partilhá-la?
- Partilhar? Como assim?
- Oh, não desejo a sua doença. De todos os pecados, a inveja não me cobiça. Não a quero, muito obrigado, mas se quiser dizer do que sofre, todo eu sou um ouvido.
- Pronto, tenho enxaquecas. Está satisfeito?
- Satisfeitíssimo. Acabo de descobrir que nem todas as doenças vivem neste meu corpinho. Enxaqueca!... Gosto muito dessa palavra. Mas é maleita chata, não é?
- Horrível! E olhe que o senhor já me está a fazer mal.
- Mais não posso do que pedir-lhe as mais vivas desculpas por das minhas presentes palavras arrancar-lhe uma dor. Não tinha, lho juro, a menor intenção. E não me cai a culpa em cima: foi a senhora quem iniciou esta agradável conversa.
- Agradável? Bolas, apanhar com um número destes logo pela manhã!
- Então, enquanto espera por um número, diverte-se com outro. Qual é o seu destino?
- O meu destino?
- Até onde deseja ser levada pelo autocarro?
- O que é que tem a ver com isso?
- Em rigor, nada, mas a conversa por si iniciada para aqui nos atirou.
- Vou para a Estrela.
- Ah, poesia, ao romper da aurora! Sabe?, acabei de decidir que também vou para lá. E mais: cego, sigo o seu conselho - plantar-me-ei no jardim. E dizia a senhora que eu, aqui, nada fazia. Já vê: descobri o meu próximo poiso. Passe bem.
- Então?...
- Sim?...
- Vai a pé? Não vê que o autocarro está a chegar!?
- Ele que chegue e que um raio o parta. Eu, minha senhora, está lembrada?, não o esperava.
- Ele há malucos para tudo.
- Então não há, minha amável senhora! Até há malucos que se imaginam sardinhas com ânsias de se entalarem em caixas rolantes. Veja bem como roda este mundo? Pois que chegue pouco amassada à sua Estrela.

7.3.05

Caríssimos leitores,
Depois da tremenda explosão que por aqui se deu, o regresso às lides é feito sob o benfazejo signo do delírio, tão caro a esta toca perdida na vastidão da blogosfera.
A reabertura é assinalada pelo quarto tomo da série “Diálogos de Morte”, esse rebuscadíssimo título de inefável imaginação, só ao alcance dos mais argutos autores ao serviço da ditadura da palavra.
Para este quarto número convidámos um heróico proprietário de uma máquina avariada e um bom mecânico. Ao mecânico, por ser bom, damos-lhe a graça do itálico. O outro, do hábito não se livra: fala com “palavras direitas”.



- Pelo que vejo... o carro tem muitos problemas. É de admirar como ele ainda conseguia andar!
- Também pasmo perante este insondável mistério, Senhor. Carregando problemas, ainda anda, veja bem! Mas deixe-me que lhe diga: é uma vetusta máquina à minha medida.
- Não vou conseguir arranjá-lo hoje...
- Compreendo. A noite já nos cai em cima, e se ele apresenta assim tantas queixas... Olhe, fique com ele.
- Como?
- Assim, como está. Dê-lhe o destino que mais lhe aprouver; eu, não o quero.
- Mas...
- O Senhor abriu-me os olhos. Que faço com um amontoado de problemas em lata enferrujada? Descasque a chapa, arranque o motor, extraia peça por peça todas as velharias que ele ainda conserva dentro do prazo e faça um dinheirinho para si.
- Mas o carro é seu, o lucro também deve ser para si!
- Dou-lhe o lucro. Não quero nada dessa sucata!
- Mas...
- Hoje ofereço eu; amanhã, se a indigência chegar antes da fortuna, talvez lhe peça uma maçã.
- Não posso...
- Não pode recusar! É um acto de bondade, vindo de um estranho, é certo, mas em hora de dar. Guarde o orgulho ou as sumárias convenções de Justiça e agarre-se a uma insignificante oferenda que, nos dias que vão correndo, ou os meus olhos me enganam, ou é coisa rara de se avistar.
- Se é isso que quer!...
- É isso mesmo.
- E o senhor, como vai?
- Pacifique a sua consciência e não carregue o semblante com a máscara da preocupação. Vou a pé, de olhos postos na Polar, a apanhar com os rigores do Inverno pelas trombas. Para alguns, meu senhor, a vida roda num casino: se tiver sorte, apanho boleia de uma ricalhaça formosa; enroscamo-nos num hotel de muitas estrelas; ela fuma; eu fumo e bebo borbulhas caras; ela deixa um cheque chorudo no leito suado; eu agarro no dinheiro e compro uma ilha no Pacífico, onde irei acabar os dias a brincar com tubarões. Se tiver azar, levanta-se uma tempestade dos diabos; cai-me um raio em cima; fico em cinzas; passa um cão vadio e mija em cima do meu pó, sem que se suspeite que alguma vez tenha existido. Se tudo isto girar como tem girado, que é o mais certo, assim num género de empate, sem ganhar nem perder, sem muita sorte, sem muito azar; ando, ando, converso com os botões, ando e ando, até o nariz farejar a casota. E quando ele me avisar que nela estou, dou umas voltas até deitar os ossos nas palhinhas.
- O senhor desculpe, mas, está bem?
- Então não estou? Desfeito da carroça, sou passarinho sem predador.
- Tem certeza?
- Nem por isso. O senhor tem certezas?
- Algumas.
- Desconfie. Sobretudo dessas! Tenha uma boa noite. De amor, se os formigueiros para aí o chamarem. E aproveite: a lua está prenha, mas tome cuidados contra as fertilizações indesejadas, que este mundo está a rebentar.

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