28.2.05


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Uma recepcionista, um estranho doente que conversa com uma senhora enquanto espera pelo exame. Elas em itálico. Ele, não. É mais um:

- O seu nome, por favor?
- M. A.
- Idade?
- Quarenta.
- Profissão?
- Não tenho.
- Está desempregado?
- Não, não tenho profissão.
- Mas nunca teve?
- Não.
- Não faz nada?
- Então não faço, vivo.
- Nem qualquer coisa que se possa pôr aqui na ficha de inscrição?
- Se faz questão de martelar nas teclas do computador, ponha chulo, ou parasita, ou qualquer coisa assim que lhe venha à cabeça.
- Não posso escrever isso.
- Minha cara senhora, sou advogado. Está bem assim?
- Mas se não é!
- Mas se quer que eu seja alguma coisa, a partir de hoje sou o insigne advogado A., graças à sua gentileza de enfiar à viva força um canudo na minha vida. Muito agradecido!
- Olhe, pronto, não ponho nada.
- Muito bem, a verdade é uma bóia: vem sempre ao de cima. Mas lembre-se: não pôr nada é pôr alguma coisa.
- Pode passar ali para a sala de espera, Sr. M., e aguarde a chamada.
- Muito bem, eu aguardo. Ali, onde?
- É só virar à esquerda.
- Que esquerda? Minha ou sua?
- À sua esquerda.
- É para onde virámos, sim senhor. Obrigado.
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- Também vem fazer uma "endo-cuspia"?
- Não, minha senhora. Venho fazer um exame com um nome ainda mais esquisito.
- Ah! Eu ando aflita do estômago.
- Pois, cada um com a sua maleita.
- Foi a malvada da minha filha que me trouxe, que eu não posso andar assim por aí.
- Pois...
- Estou a viver em casa dela. Já não me posso valer, sabe. A idade não perdoa. E trabalhei muito em toda a minha vida, lá na terra, a esgaravatar no campo de sol a sol, a mando do meu marido, que descanse lá em baixo, o malvado.
- Lá em baixo?
- No Inferno.
- Conheço.
- Conhece?
- Mais ou menos, de ler.
- Estudou, o senhor?
- Acabaram de me licenciar, veja bem. É preciso vir tratar da saúde para sairmos daqui com vida nova.
- Ah! Eu nunca estudei. Sei escrever o meu nome, e mal. A minha vida foi muito difícil. O meu marido era um malvado. Era muito ciumento e estava sempre agarrado à garrafa. Veja lá que meteu na cabeça que eu o enganava com o irmão dele. Andava sempre desconfiado, o diabo, Deus me perdoe. Sempre à espreita, sempre a seguir-me. Não podia ir para lado nenhum, imagine o senhor. E batia-me. Ah!, eu sofri muito, e continuo a sofrer, agora nas mãos da filha que é igualzinha ao pai.
- Pois...
- Sabe, já tentei matar-me uma porrada de vezes.
- Então?
- Olhe, da infelicidade. O malandro batia-me. Uma vez tentei enforcar-me; já estava com a corda no gasganete mas o diabo chegou a tempo, viu-me e ainda me bateu, veja lá! Uma pessoa quando tem azar até na cama parte as pernas.
- Agora é que disse uma grande verdade, minha senhora. A senhora é uma filósofa. Às vezes não é preciso pensar muito, é preciso viver.
- Pois, pensar para quê?...
- Ora vê, a senhora é quem sabe.
- E olhe que já vivi muito, sempre a penar, infelizmente. Chamaram por Cremilde, não foi? Olhe, lá vou eu para mais uma. Adeus e as suas melhoras.
- Quando souber se quero melhorar, agradeço-lhe, minha senhora.

25.2.05


Aquele que um dia ensinar os homens a voar deslocará todas as barreiras; fará saltar todas as barreiras, dará à Terra um nome novo, chamar-lhe-á «a Leve».
A avestruz vence na carreira o cavalo mais rápido, mas enterra pesadamente a cabeça na terra pesada; tal o homem que ainda não aprendeu a voar.
A terra e a vida pesam-lhe, e é isso que quer o espírito de Gravidade. Mas aquele que quer tornar-se leve como uma ave deve amar-se a si mesmo; assim ensino eu.
Não com o amor dos doentes e dos febris - porque nesses até o amor-próprio cheira mal!
É preciso aprender a amar-se a si próprio, tal é a minha doutrina, com um amor total e são, a fim de ficar preso a si mesmo em vez de vagabundear com todos os sentidos.
Esta vagabundagem intitula-se «amor ao próximo»; não há palavra que tenha servido para cobrir mais mentiras e hipocrisias, sobretudo por parte daqueles que se tornavam insuportáveis a toda a gente.
E na verdade,
aprender a amar-se, não é uma máxima aplicável a partir de hoje ou de amanhã. É, pelo contrário, de todas as artes, a mais subtil, a mais astuta, a arte suprema, e aquela que requer mais paciência.
O que possuímos está-nos sempre escondido; e de todos os tesouros é o seu próprio que todos desenterram em último lugar. Assim o quis o espírito de Gravidade.
É quase desde o berço que nos dotam com palavras pesadas, com valores pesados chamados «bem» e «mal», porque tal é o nome deste património. Pelo preço desses valores, desculpam-nos o facto de viver.
E se os homens deixam vir a si as criancinhas, é para as impedir a tempo que se amem a si próprias; tal é a obra do espírito de Gravidade.
Quanto a nós, arrastamos conscienciosamente aquilo com que nos carregaram, nos nossos duros ombros, para além de rudes montanhas. E quando estamos encharcados em suor, dizem-nos: "Sim, a vida é difícil de levar!"
Mas é apenas o homem que tem dificuldade em levar-se a si próprio. Porque arrasta às costas demasiadas coisas que lhe são estranhas. Como o camelo, ajoelha-se para se deixar carregar bem.
Sobretudo o homem vigoroso, resistente, cheio de respeito; carrega às costas muitas palavras pesadas, pesados valores que lhe são
estranhos - e a vida parece-lhe então um deserto.
E na verdade, os nossos próprios bens são muitas vezes já difíceis de levar. E o homem, dentro de si, é apenas muito parecido com a ostra - repugnante, viscosa e difícil de apanhar,
- de tal forma que precisa de uma bela concha decorada com belos desenhos para falar a seu favor. Mas mesmo esta arte deve ser aprendida, quero dizer a arte de se transformar numa concha, com bela aparência e uma sábia cegueira!
E ainda por cima o que muitas vezes engana, é ser esta concha frequentemente humilde e triste e ter em excesso o aspecto de uma concha. Ninguém adivinha a profusão de bondade e de força que ela dissimula; os manjares mais delicados não encontram amadores!
Sabem-no as mulheres, pelo menos as mais sofisticadas: uma suspeita de gordura a mais ou a menos, oh! quanta fatalidade se liga a coisa tão pouca!
O homem é mais difícil de descobrir, sobretudo quando se trata de se descobrir a ele mesmo. Muitas vezes o espírito mente a respeito da alma. Eis a obra do espírito de Gravidade.
Mas aquele que soube descobrir-se a si mesmo proclama:"Este é o meu bem, este é o meu mal." Com isso tapou a boca à toupeira, ao anão que diz: "Bem para
todos, mal para todos."
Na verdade, também não me agradam aqueles que declaram que todas as coisas são boas e que este mundo é o melhor dos mundos. Digo que têm a satisfação fácil.
A satisfação fácil, que se acomoda com qualquer coisa, não é o melhor dos gostos! Louvo as línguas e os estômagos recalcitrantes e difíceis que sabem dizer «Eu» e «Sim» e «Não».
Mastigar e digerir tudo, porém - é bom para os porcos, na verdade. Berrar a torto e a direito sim e
ámen, é o que aprendem os burros e aqueles que se parecem com eles!
Um amarelo-torrado, um vermelho-ardente - eis o meu gosto, que mistura sangue com todas as cores. Mas aquele que caia a casa de branco revela-se uma alma caiada de branco.
Uns estão apaixonados por múmias, outros por fantasmas, todos igualmente inimigos da carne e do sangue: oh! como me repugnam todos! Porque gosto de sangue.
E recuso-me a morar ou a demorar-me em lugares onde todos cospem e vomitam à vontade; tal é o meu gosto. Preferiria muito mais viver no meio dos ladrões e dos perjuros. Ninguém traz o seu ouro na boca.
Mas ainda me repugnam mais os lambedores de escarros, e ao animal humano mais repugnante que conheço, chamei-lhe parasita, pois não quer amar, mas viver do amor que têm por ele.
Desgraçados, na minha opinião, são todos aqueles que só podem escolher entre duas coisas: ou tornarem-se animais ferozes ou ferozes domadores. Não construirei entre eles a minha tenda.
Desgraçados são também aqueles cujo destino é
esperar; repugnam-me todos esses guardas-fiscais, tendeiros, reis e outros mandriões ou monos.
Na verdade, também eu aprendi a esperar, mas a esperar-me
a mim mesmo. E sobretudo aprendi a estar de pé, a andar, a correr, a saltar, a trepar, a dançar.
Porque tal é a minha doutrina; se quisermos aprender um dia voar, é
preciso começar por aprender a estar de pé, a caminhar, a correr, a saltar, a trepar, a dançar. - Para aprender a voar não basta um único golpe de asa!
Aprendi a escalar mais de uma janela com as escadas de corda; subi a mastros elevados com pernas ágeis; escarranchado nos elevados mastros do Conhecimento, experimentei uma felicidade muito apreciável,
- as chamas errantes que se acendem no alto dos mastros não passam de um pequeno clarão, mas que grande consolo para todos os navegadores encalhados ou naufragados!
Tomei por muitos caminhos e servi-me de muitos meios para chegar à minha verdade; servi-me de mais
uma escada para chegar à altura de onde o meu olhar percorre os longínquos espaços.
E foi sempre contrariado que perguntei o meu caminho, sempre isso me repugnou! Prefiro interrogar os próprios caminhos e experimentá-los.
Experimentar e interrogar é a minha maneira de avançar, e na verdade é também necessário
aprender a responder a semelhantes perguntas. É esse o meu gosto,
- esse gosto não é bom nem mau, é o meu gosto; não tenho vergonha dele e dele não faço mistério.
"Eis o
meu caminho; e vós, onde está o vosso?" É o que respondo aos que me perguntam o «caminho». O caminho, com efeito, não existe!
Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

24.2.05


A minha linguagem - é a do povo: linguagem muito forte e muito franca para os delicados. E a minha palavra parece ainda mais insólita aos escritorzecos e aos rabiscadores de todas as qualidades.
A minha mão - é a mão de um louco. Pobres de todas as mesas, de todas as paredes, de quanto oferece ainda um campo livre para loucos arabescos, para rabiscos de louco!
O meu pé - é casco de cavalo. Trota e galopa a despeito de todos os obstáculos, para cima e para baixo pelos campos, e as suas correrias rápidas dão-me um prazer diabólico.
O meu estômago - não será antes um estômago de águia? O que ele prefere é carne de cordeiro. Mas é certamente um estômago de ave.
Sustentado com uma carne inocente, satisfeito com pouco, sempre pronto para o voo, impaciente por voar, elevar-me, eis como sou. Como não havia de ter alguma coisa de ave?
E é sobretudo por odiar o espírito de Gravidade que tenho alguma coisa da ave; na verdade, sou seu inimigo mortal, abonado, jurado! Para onde, então, não voou já o meu ódio, desencaminhado?
A este respeito poderia fazer uma canção - e cantá-la-ia, se bem que, sozinho numa sala vazia, só possa cantar para os meus próprios ouvidos.
Outros cantores precisam de uma sala cheia para sentir a garganta harmoniosa, a mão eloquente, o coração alerta, o olhar expressivo - mas não me pareço com eles.
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

23.2.05


Ai bela toca!, estamos definitivamente a ser invadidos por aquele grande monstro escavador que galopa em direcção ao nosso refúgio, com ganas de querer destruir a nossa verde floresta, outrora vasta, agora reduzida a este quadrado que nem dos céus os satélites marcam. É ver o monstro em marcha, escavando progresso, para erguer a sua grande obra de condomínios onde os senhores se fecharão da ladroagem crescente em tempo de tamanha crise. São eles, os meliantes, ratos escavadores na vida que se entregaram ou caíram nas malhas da desigualdade social, essa gorda aranha cuja teia precariamente se explica, e que, uma vez tecida, é vê-la em expansão, agarrando os desamparados que tombaram por conta própria ou aqueles que foram atirados por terceiros, e que, depois de presos na teia viscosa, são finalmente largados nas ruas, que, sendo de amargura, os olhos de muitos humedece, mas só quando, de passagem, dão de caras com a indigência exposta, enrolada na maltrapilha pobreza. Quando isso acontece, quando observam a desgraça alheia, trauteiam um choroso rosário de falinhas carinhosas, embargadas pela solenidade: ai coitadinhos, ai coitadinhos. Coitadinhos dos que nada possuem, que tanto frio passam sem estômago aconchegadinho. Mas a vida é assim, rezam baixinho; e se assim é, que cada um siga o seu caminho, às vezes com interrogações: que lhes terá acontecido? E Deus nos livre da vida nos pintar semelhante quadro. Ora para estes que na rua dormem, bela toca, não há condomínios. Para eles, não há floresta que abaixo se deite, porque, no final de certas contas incertas, precisa o globo de espaços verdes, bonitos e oxigenados, para meio mundo ainda viver mais uns séculos sem necessitar de "aprender a respirar". E onde pode estar o paralelo que nem sequer se tentou fazer? Mais dia, menos dia, também tu, ó toca, vens abaixo, e fico eu sem o teu protector tecto terreal. Já vês: rua comigo. E aí, só não serei um coitadinho porque já sou bicho desgraçado, perseguido pela repulsa humana, que, de todos os ratos, só gostam dos amestrados, dos engaiolados, dos em desenho animados; ou então daqueles que nas mãos humanas são manipulados, injectando-lhes cancros, amputando-lhes membros, para que a ciência evolua, até ela transformar o bravo homem em "animal eterno". E assim, como não pertenço a nenhuma dessas classes, indigência com ele. Comigo, que sempre fui rato do campo e que do campo talvez tenha de fugir, para procurar morada num esgoto em cidade imunda. Depois admiram-se das grandes epidemias, bela toca. Então não somos nós obrigados a chafurdar na imundície deles? Como, como não ficarmos furiosos, com vis apetites de lhes filar as carnes? Mas devo de estar a ver mal as coisas. Há neste sangue qualquer coisa de rato-cego. Porque a vida é assim, reza-se por aí. Há para uns; escasseia para outros. A vida é assim, esse grande hino da resignação, do bom acomodamento, do o-mundo-é-o-meu-umbigo, que já teve cordão, mas que agora anda à solta, livre, governando(-me). Que viva o meu umbigo em limpeza e que cada um trate do seu. Assim é a vida. Cada vez mais longe, do próximo. Será mesmo assim, ó toca? Ou estou eu delirando perante o monstro que se agiganta na sua destruição até este tugúrio?

22.2.05

21.2.05


Cansado como nunca entrou o rato em sono profundo com o badalar das seis horas da tarde daquele luminoso Domingo. Caído no sono, sonhou.
Uma enorme mão esquerda vinda dos céus caiu com estrondo no oceano que lambe todo o país do rato. Do embate criou-se uma avassaladora onda da cor da rosa que inundou quase todo o território. Foi a aflição para alguns. Foi a salvação para outros, essa grande maioria. Entre os destroços criados pela devastação viu o rato em sonho uma lapa agarrada a uma laranja amarga e murcha, perfurada por uma seta, flutuando, perdida e solitária, sem rumo, levada ao deus-dará no meio da enxurrada. Também viu um bom homem que o sonho identificou como cristão, com duas mãos erguidas aos céus. Dez dedos tentando contactar a figura de Deus e que perguntava: "Dizei-me, é hoje? Sempre Te pedi luz para me indicares o dia da despedida. É hoje que devo despedir-me desta vida?" Sem resposta que se ouvisse, foi levado, com a graça de Deus. E viu mais. Viu gente que em si não se continha, tal era o contentamento perante a onda. Viu uma senhora pequenina que do alto falou, dizendo que era dia de "virança". (Virança, menina?) Viu muitas chamas vermelhas inflamadas pela vitória. Ouviu alguns gritos em italiano, pedindo para que todos agarrassem a "mano sinistra", a apertassem com força e que seguissem o caminho da mudança. Foi então que um gordo sapo apareceu e gritou: Sabeis, meus amigos, que as rosas têm espinhos? Ainda só vedes a rosa em botão. Esperai para a ver desabrochar. Deixai que os espinhos brotem, e então aí observai se são os espinhos bons ou, pelo contrário, contêm o veneno que o vosso contentamento primeiro não vos deixa ver. Mas depressa o sapo foi engolido pela multidão e desprezado pelo batalhão de jornalistas e fotógrafos que, de objectivas em riste, seguiram um sorriso de vitória tatuado na cara de um homem que, furando o alvoroço, se dirigiu para o Rato. E de lá, para o Largo falou aquilo que a inteligência nunca se cansou de repetir: somos absolutos! Confiança! Optimismo! E a multidão aplaudia para o sorriso e dizia: agora é que vai ser! Com esta onda afastamos a trapalhada, lavamos a cara deste país. Vamos ser...
Aqui o rato acordou. Ainda estremunhado viu que a lua ia alta. Na madrugada, as estrelas eram as mesmas e brilhavam com a intensidade costumeira. Olhou para o oceano e viu-o calmo, com as ondas a suspirarem na mesma cadência, e sussurrou: O mundo (ainda) está igual.

19.2.05


Em dia dedicado à reflexão trazemos a esta página mais um pedaço de excelsa prosa, rabiscada por esse mestre opinador, capaz de ordenar os mais complexos pensamentos, explorando-os com grande agilidade intelectual e vertendo sobre nós toda a sua retórica de espantar. É que chegar a este elaborado raciocínio: "Se fosse possível resumir tudo em quatro palavras, elas seriam assim: está tudo em aberto. E está mesmo.", não está ao alcance de qualquer alma. É preciso ser-se astuto, ter dois dedinhos de testa e observar com óculos de ver (e aumentar) o que à sua volta gira. A iluminada frase, falando das eleições, vem do cérebro do senhor Luís Delgado que tanto nos tem dado, que tão bem nos tem informado, com tino, acerca do que realmente se passa neste país político. Sem ele, ficaríamos nós mais pobres, mais cegos. Tornar-se-ia a nossa vida mais macambúzia, envolta num cinzentismo que, assim, depressa se dilui com os benefícios da gargalhada, que, bem se sabe, é balsâmica, alegra o espírito e exercita os músculos faciais, ainda que, no íntimo, habite uma negra nuvem de tristeza ao verificar que não é mentira, não há partida, não é ele fantasma ou holograma, não, ele existe, e tem voz, e alguém dá-lhe eco, para bem e mal dos pecados, não nossos, mas do sistema, capaz de acolher no seu estranho seio tanta figura assim, com humor, por alguns levado a sério, e sobretudo levando-se ele muito a sério!, sem nada verdadeiramente sensato brotar da sua verborreia de desencantar. Mas que viva o senhor muitos anos, sempre opinando, porque comediantes nunca são de mais, sobretudo em tempo de crise.

18.2.05


Portuguesas e portugueses,
D'
O País Relativo chega-nos um desconcertante post sobre uma peça de apelo ao voto, em prosa menor, é certo, mas com inestimável valor para compor de forma brilhante o ramalhete da campanha que o doutor Santana Lopes, com muita graça, benevolentemente nos ofereceu. A avaliar pelo que n'O País Relativo se publicou, e que eu ainda não havia lido, da pena do democrata laranja sai preciosidades deste calibre: "Eles acham que eu sou de fora do sistema que eles querem manter. Já pensou bem nisso?
Provavelmente nós temos algo em comum: não nos damos bem com este sistema. Tenho defeitos como todos os seres humanos, mas conhece algum político em Portugal que eles Tratem tão mal como a mim?
Também o tratam mal a si. Já somos vários.
Ajude-me a fazer-lhes frente."
Agora é só seguir por aqui, para a leitura integral.

17.2.05


Em certos lugares do mundo há ainda povos e rebanhos, mas não entre nós, irmãos: entre nós só há Estados.
O Estado? O que vem a ser isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.
O Estado é o mais frio dos frios monstros. É frio mesmo quando mente; e eis aqui a mentira que sai da sua boca: «Eu, o Estado, sou o povo.»
Mentira! Os que criaram os povos e lançaram sobre as suas cabeças uma fé e um amor, esses eram criadores: assim serviram a vida.
Mas, destruidores, armaram laços à multidão, e a isso chamam Estado; suspenderam sobre as suas cabeças uma espada e cem apetites.
Onde ainda há um povo, aí o Estado não é compreendido, mas odiado como o mau-olhado, como um pecado contra a moral e o direito.
Eu vos dou este sinal: cada povo fala numa língua particular em matéria de bem e de mal: o seu vizinho não a compreende. A sua linguagem é diferente na moral e no direito.
Mas o Estado sabe mentir em todas as línguas do bem e do mal; e em tudo quanto diz, mente - e quando tudo tem, roubou-o.
Tudo nele é falso; morde com dentes falsos, esse intratável. Até as suas entranhas falsas.
A confusão de todas as línguas do bem e do mal, eis o sinal que vos dou: tal é a marca do Estado. Na verdade, é um sintoma da vontade de morrer! Na verdade, é um convite aos pregadores da morte!
Nascem homens de mais: o Estado foi inventado para aqueles que são supérfluos!
Vede como ele vos atrai, aos supérfluos! Como ele os engole e mastiga e os volta a mastigar!
"Na terra não há nada maior do que eu; eu sou o dedo soberano de Deus" - assim grita o monstro. E não são só os que têm vista curta e ouvidos sensíveis que se ajoelham diante dele!
Ai! Também em vós, grandes almas, ele sussurra as suas sinistras mentiras. Ai! Ele encontrou os corações ricos que gostam de ser pródigos.
Sim, adivinha-vos a vós também, vencedores do Deus de outrora! Cansaste-vos do combate, e agora a vossa fadiga pôs-se ao serviço do novo ídolo!
Este novo ídolo quereria rodear-se de heróis e de homens respeitáveis. Este monstro frio gosta de se aquecer ao sol das boas consciências.
Dar-vos-á tudo, contanto que o adoreis, a este novo ídolo; comprará por este preço o brilho da vossa virtude e o olhar dos vossos olhos altivos.
Quer servir-se de vós como de um isco para a multidão. Sim, inventou com isso uma máquina infernal, um corcel da morte, tilitante sob o seu ajaezamento de honras divinas.
Sim, inventou assim para uso da multidão uma forma de morte que se glorifica de ser vida; era na verdade o melhor serviço que se podia prestar aos predicadores da morte.
O Estado é o lugar onde todos, bons e maus, estão intoxicados; onde todos se perdem, bons e maus, onde o lento suicídio de todos se chama «a vida».
Vede, pois, esses supérfluos! Aproximam-se das obras dos inventores e dos tesouros dos sábios: a esta rapina chamam a sua «cultura» - e neles tudo se transforma em doença e confusão.
Vede, pois, esses supérfluos! Estão sempre doentes, vomitam a bílis; é a isso que chamam jornais. Entredevoram-se e nem sequer chegam a digerir-se.
Vede, pois, esses supérfluos! Adquirem riquezas e só se tornam mais pobres. Querem o poder, e primeiro que tudo a alavanca do poder, muito dinheiro - esses impotentes!
Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns por cima dos outros e arrastam-se mutuamente para o lodo e para o abismo.
Todos querem ascender ao trono: é a sua loucura - como se a felicidade estivesse no trono! Muitas vezes é a lama que está no trono -, e muitas vezes é o trono que está plantado no lodo.
São todos loucos, eu vo-lo digo, outros tantos macacos trepadores e febris. O seu ídolo, esse monstro frio, cheira mal: também eles, esses idólatras, cheiram mal.
Quereis sufocar na exalação das suas goelas e dos seus apetites, ó meus irmãos? Arrancai antes as janelas, e saltai para o ar livre!
Evitai esse cheiro odioso! Evitai cair na idolatria desses supérfluos!
Evitai esse cheiro odioso! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!
Ainda existe terra livre para as grandes almas. Para aqueles que se exilam voluntariamente, solitários ou aos pares, ainda há vagos muitos sítios onde sopra o hálito dos mares tranquilos.
Ainda existe uma vida livre para as grandes almas. Na verdade, quando se possui pouco, tanto menos se é possuído: abençoada seja a pobreza modesta!
Onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo: onde acaba o Estado começa o canto da necessidade, a única e insubstituível melodia.
Onde
acaba o Estado - olhai para lá, meus irmãos! Não distinguis o arco-íris e as pontes que levam ao Super-humano?
Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

15.2.05


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Daqui,
Mp3:

1. Halo Of Gold - More Oar: A Tribute to Alexander 'Skip' Spence (1999)
2. He's A Mighty Good Leader - One Foot In The Grave (1994)

Fotos:
www.beck.com
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Só se o homem mandar VII

Vamos dançar *?! Havemos de ser sempre uma família, Lindocão. Como dizem os outros, contra ventos e marés, cá estaremos nós. Aqui ladraremos, aqui moraremos. Mesmo que o vizinho sinta nas orelhas de tísico as ondas das tuas incríveis unhas que perpassam a má construção, tão má que até os meus leves passos na ordem dos sessentas são sentidos na irritadiça cabeça do senhor vizinho. E mesmo que ele implique com o teu osso lúdico, mesmo que lhe faça confusão que tu vivas no mesmo caixote que ele, cá estaremos nós para lhe ladrar: meu senhor, na nossa noz não aceitamos outros comandantes que não nós, respeitando sempre, como sempre tem acontecido, a morada alheia. Sabes quem ele é, não sabes? Aquele, Lindocão, o careca de sorriso patético para o qual te enfureces. Pergunto-me se sabes que ele não vai com o teu focinho. Provavelmente porque nunca foi com o meu e, cobardolas, faz-te de bode, meu cão. Muito gostam eles de se armarem em expiatórios. Querer mandar! Oh, gozo supremo! Controlar as vivências de terceiros. Nalgumas cabeças assim é: és cordeiro e segues na linha do bom rebanho? Então tudo corre no carreiro respeitoso. Mas, se do carreiro por outros trilhado te afastas, és lobo, sanguinolento e com duvidosos ares de perigoso, logo, uma fera, a abater, porque aqui e nos arredores, mandam eles, os que primeiro chegaram, aqueles que instituíram lei. Ah, doce engano, Lindocão! Nesta barraca, não fareja ele! Mandará na sua família direita. E faz muito bem! Mas nas famílias canhotas, não põe ele a sua má pata destra. Que tenha sangue de polícia, muito bem, mas que a veia arrítmica pulse lá no seu andar inferior, ora essa! E mais te digo: sempre fomos assim pró contido, lobinhos com lustroso pêlo de cordeiro, mui civilizados. Agora vamos pôr as garras de fora. E começamos já. Com musiquinha! Dança, Lindocão, dança! Estão os decibéis dentro da lei. Ainda brilha a tarde. Estamos legais, não é assim? Então bate. Bate com as unhas neste chão que é nosso. Nosso, Lindocão.

Fotografia de Elliott Erwitt
* Link para "Leave Me on The Moon" (mp3), de Beck, tema incluido em "Kill The Moonlight Soundtrack "

14.2.05


Anos e anos com as putas das insónias às costas. Não me largam. Não dão tréguas. Anos a tentar descobrir as causas deste mal. Anos a fio levados a mitigar as suas consequências. Anos a tentar combatê-la com mezinhas e chás das vizinhas, com valerianas e tisanas de marijuanas, com panaceias em drageias... E elas, as putas, estóicas, ganhando a luta pelo sono. Mas isto vai acabar porque a culpa é - sei-o imprecisamente - do livro de cabeceira. "O Livro do Desassossego" que repousa ao lado do catre doente, com umas páginas lidas e relidas, com todas as outras por desfrutar. É essa a simbólica mãe de todas as preocupações: sem ler o desassossego do Pessoa, não sossego eu. Mas nunca me sinto preparado para tal, tal qual nunca me sinto preparado para tantas outras coisas, nem mesmo para combater a insónia até a matar de vez, ela, a puta que é simultaneamente filha e mãe do mesmo mal: a preocupação funda da preguiça mortal, que, sendo pecado, faz mal. Faz ela e faço eu que não a degolo a cada minuto do tempo porque ela, a preguiça, esperta como um rato, vem sussurrar na minha, essa sim, dormente, consciência:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

"LIBERDADE", de FERNANDO PESSOA

12.2.05

11.2.05



9.2.05

Ficções com Biblioteca

Lança-se a Revista Ficções na meritória empresa de construir uma Biblioteca online do Conto. Da toca se saúda a publicação que vai na décima edição, sempre dedicando a sua atenção ao conto, género literário que nem sempre tem recebido a atenção e os favores do público.
Aconselhamos, pois, uma visita ao sítio da FICÇÕES, e de lá, entrar no canto reservado ao conto português. Já lá estão alguns mestres: Camilo, Eça, Aquilino Ribeiro… e alguns mais. Ide, e dizei-me, depois, se não valeu a pena.

Ai rato, que foste levado pelo Público!

Ontem, aqui, demos eco a uma espantosa notícia saída nas insuspeitas páginas do Público que dava conta da aposta de Cavaco Silva numa maioria absoluta do PS nas legislativas de dia vinte. No mesmo dia, mais tarde, a página electrónica do mesmo jornal dizia que “fonte próxima do ex-primeiro-ministro Cavaco Silva, não identificada pela Lusa, desmentiu hoje que o antigo chefe de Governo tenha assumido qualquer aposta na hipótese de o PS conseguir uma maioria absoluta nas eleições legislativas de 20 de Fevereiro. Hoje, o Público diz que Aníbal Cavaco Silva vai manter silêncio até dia 20, data das eleições, mas ontem mostrou-se incomodado com a notícia do PÚBLICO que tinha por título ‘Cavaco aposta em maioria absoluta de Sócrates’.O ex-primeiro-ministro não gostou que fosse recordado, nesta altura, que defende que o melhor para o país são executivos de maioria absoluta e que prevê que o PS possa vir a conseguir governar nessas condições. Não gostou também da leitura de que esse cenário será o mais favorável à sua candidatura presidencial, além do facto de o termo ‘aposta’, que era usado no sentido de previsão, estar a ser interpretado como um apoio ao líder socialista.”

Nos entrementes, procuramos nós a verdade neste jogo do diz que disse, muito baralhado nas cartas do afirma/desmente. Nada de muito novo: as notícias, meus amigos, precisam de quarentena. Caiu o rato ingénuo na armadilha da grande notícia. Quando é que aprendes, ó rato?

8.2.05

Corsos

É daqui, com a porta a sete chaves trancada, que se ouve a festarola carnavalesca. Esse imenso Carnaval que anda à solta no país mascarado de folião, pequenino e dançarino, convertido à fantasia do Entrudo, onde cabem todos os disfarces. É o país definitivamente invadido por espanholas peludas, os imortais palhacinhos de martelo em riste, as bailarinas, as fadas madrinhas, as madrinhas sem aura, e mais mil fantasias brincando nos grandes corsos, lado a lado com esse outro grande espectáculo dos comícios da campanha que oficialmente rebenta. E com grandes novidades. Sabemos, por exemplo, que o Doutor Paulo Portas é candidato a primeiro-ministro, empolgado por um banho de gente que, segundo rezam as boas crónicas, assistiu ao início da campanha do CDS. O ego, meus amigos, fez-se para ser alimentado, para viajar, para ser usado e abusado. Neste fervente deslumbre sobem as aspirações do senhor da campanha pela positiva, da campanha da tenda itinerante que pelo país quer deixar a marca da seriedade numa mui inteligente posição, afastado das questões menores, só para os problemas do país virado e muito longe desse “espectáculo humilhante para a política, que dá ideia que com estes governantes vale tudo", frase lapidar do Doutor Sócrates, referindo-se ao Doutor Santana, por este, segundo ele, “ter trocado o carro do PSD pelo Falcon do Estado”. Envolveu, pois, “meios do Estado na campanha”. Onde já se viu semelhante desplante!?
Miúda novidade é a última facada do Professor Cavaco nas fragilizadas costas de Santana Lopes. Ora o prof. aposta “numa maioria absoluta do PS nas legislativas de dia 20 e considera que esse é o melhor cenário para o lançamento da sua candidatura à Presidência da República. Cavaco está mesmo convencido de que esse cenário se vai concretizar e tem manifestado essa opinião em reuniões sociais em que tem participado e nas quais se tem encontrado com figuras do PSD, sobretudo críticos da actual liderança de Pedro Santana Lopes.” Assim, com todos estes fortes ventos que sopram de todo o lado, prossegue o esfaqueado Santana o seu calvário pelo país afora, ao lado do Doutor Alberto João que preteriu as fantasias de rei nos corsos da Madeira para, de corpo presente e alma sem sem máscaras, à campanha se entregar. E assim vai ela, a campanha, em Carnaval.

4.2.05



Charles Baudelaire
(1821 - 1867)

Daqui,

EMBRIAGUEM-SE


É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso. Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vega, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flúi, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher".
Charles Baudelaire

2.2.05

Pérola

É a televisão, como tão bem se sabe e vê, esse grande poço de cultura que nos ensina, que nos educa, que a si chama as massas sedentas por conhecer, "estar a par", informadas, caramba! E esclarecidas. E no topo do grande e numeroso serviço público lá está a eloquente TVI, com o seu belo português, bem capaz de envergonhar qualquer escritor da praça. As pérolas serão muitas, assim creio, como o singelo exemplo que a seguir se mostra: uma grande pérola literária, e enigmática, com que nos brinda a televisão que, de tão independente que é, até inventa deliciosos... "verbos" (?), em frases de fino recorte literário. Eis a preciosidade que me chegou pelas ondas do correio electrónico:

Sangue de Rato

Entra a estulta campanha em ambicioso pré-ponto de neste fervente Fevereiro chegar ao cume da brejeirice provinciana, tão cara nalguma má formação que ninguém poupa, alastrando por essa sociedade, qual epidemia que galga desde o baixo extracto social até ao cimo, onde, não raras vezes, se empoleiram os piores, mas com o augusto título herdado da prosápia ou do poder de serem figuras públicas com elevados (e louvados!) instintos de trepadeiras daninhas, logo, uma má formação “menor”, mascarada, “desculpável”. E é neste lodoso terreno que alegremente entram os nossos políticos de serviço. Havendo um claro vazio de ideias, seguem pelo desnorteante rumo de se atacarem, de ratarem a vida privada de cada um, de se mostrarem mui viris perante um comício de fêmeas, de insinuarem as suas preferências de cama em oposição às supostas preferências dos outros; porque o que é preciso saber é se é um adepto do sexo “direito” ou se é o outro dado ao enlace “invertido”. Se tem crias para legitimar posições políticas ou se são servis criados para certos serviços. Tudo importantes questões a serem discutidas na praça, onde o público aplaude, hipnotizados e rendidos aos espectáculos da vida real, em escarros impressa nas páginas cor-de-rosa. Lá queremos nós saber das posições de cada um! Do que pensam para o país, de quanta pátria lhes corre nas veias! Nós precisamos é de saber com quem eles dormem. Se são pais de família. Se são de boas famílias, já agora! Como se esfregam nos lençóis. E com quem! Com quem, sobretudo. E a que horas. Em sestas, entre inaugurações apressadas e jantaradas ao feminino? Isso sim, mata-nos a curiosidade. Aguça o interesse da populaça. Nas franjas e no acessório se conquistam audiências, e audiências são votos, e votos são poder, e poder é governar, e governar é foder. E para lá chegar, urge foder o próximo. Deitá-lo por terra e dizer que não se disse aquilo que a torpe comunicação social, de conluio com todos e com nenhum, fez o favor de anunciar, para fragilizar, porque mais forte do que a campanha política é essa outra campanha, uma qualquer, orquestrada por alguém que à boca pequena se insinua, não insinuando, porque tudo é névoa, e a névoa é alva, e sou eu o puro, e sou eu a vítima, e são eles uns filhos da mãe, mas não será preciso esperar muito tempo para todos saberem quem é, afinal, aquele que vai à frente nesta grave corrida para o doce poder. Uma cabala. A cavalo de uma cabala. Que raio! São todos perseguidos. São todos vítimas. E são! São vítimas da sua incompetência, da falta de ideias. E se ideias não existem, voltemos ao início, então que se ataque as pessoas na figura do outro que é adversário, e que o adversário ataque o adversário, porque tanto está um perdido quanto o outro. Ambos vazios. Todos vazios. Tudo vazio: Ah!, que nojeira!