31.5.05

Diálogos de Morte # 11

Por uma vez que talvez tenha mais exemplos… um monólogo, senhores.
Mas que queres tu, rafeiro? Estou com medo, não o cheiras? Olha como tremo só de imaginar como será triste o teu focinho à luz do dia. De onde vieste? És uma fera? És uma reencarnação maldita? O pior ser alguma vez parido, com a alma penada presa nesse crânio sem miolos gerados para a fala? Também estás sozinho? Abandonaram-te, canino? Foi a solidão! Cheiraste a minha solidão e ficaste atraído. Ou queres ferrar-me o dente na esquina mais deserta? Não me digas que também padeces de males estranhos, espírito peludo! Xô! Vai-te embora! Não tenho febras, nem as minhas, cruas ou cozinhadas, te enchiam: sou entrecosto magro, de ossos deves estar tu farto!
Olha aqui uma lixeira! Fareja! Fica aí, entretido toda a noite. Olha-me esse universo infindável de prazeres por descobrir! Faltar-te-iam anos para cheirares toda a merda que aí está. Diverte-te aí. Que queres de mim? Nada tenho para te oferecer! Apre, que é teimoso! Estás perdido? Também eu! Acha-te. Para que queres o focinho? Dá-lhe uso, caramba! Procura o teu dono e arranca-lhe os tomates como vingança. Para te chegares, deves ter algum problema. Deves ter carraças do tamanho de morcegos.
Que raio! Que perseguição obstinada! Não te cansas, tu? Não estou habituado a amores à primeira vista. Não me digas, ó espírito, que tenho feromonas especiais: não atraem bichos humanos, deixam cães vadios hipnotizados…
E vieste até aqui! Muito bem, estou entregue. Muito obrigado por teres sido o meu cão da guarda. Salvaste-me. Podia ter entrado em pânico neste breu desconhecido, mas não, vim seguro, contigo à ilharga, nesta benigna perseguição. Estou muitíssimo agradecido! Se te ofendi, oh!, se te ofendi, peço perdão. Trabalhaste bem, passaste com distinção. Podes continuar, podes procurar outro passeante solitário, protegê-lo, e fazer-lhe companhia. Mas tem cuidado! Dizem que nos tempos que correm temos de ter muito cuidado. Pelo cheiro sentiste que temos qualquer coisa em comum. Mas nada de ilusões, ó espírito! Há quem perfume a pele. Podem enganar-te: parecem amigos e depois ferram-te o dente. Vá, vai! Calcorreia o teu mundo de cheiros… Não?!... Queres guarida, é, espírito? Tecto, comida, afecto? Todos procuramos o mesmo, não é assim? E se eu tos negar? Sou mau ser? Ser humano, sem humanidade? Será que desistes? Ou perseguir-me-ás de cauda pedinte até amoleceres a minha vontade, tornando-a papa? Papa! Pai. Papa, pai! Caridade! Papa caridosa, religiosamente servida, sorvida, vendida, não dada, não, nada. Preço, preso. Para tudo. Olhas para mim!? Muito pedes tu, cão. Vá, entra lá para o covil, estranho ser. Aos espíritos perdidos estendo eu a minha mão venada pouco dada a apertos.

Porquê? Porque Se Não Pode Perder.


A sangue frio

Filhos da campa-berço
a caminho da masmorra ginásio
Olhos virados do avesso
sistema de rega por naufrágio;
Bar-restaurante de venenos
a dentadura-bisturi
O feto-camisa de Vénus
máquinas de suplício ao Ralenti...

Um açougue-infantário
um antropófago com ténia,
A máquina da Felicidade ao contrário
academia de carrascos em vénia;
Agrilhoado à morgue-escola
um cadáver repetente,
Um oceano de coca-cola
um esgoto presidente...

Três caixões ortopédicos
um suicídio por contrato,
mil conselhos médicos
sobre a autópsia-parto;
Uma retrete-manjedoura
um esqueleto de bikini,
burocratas em salmoura
vermes com pedigree...

Um trono-patíbulo
um cancro benigno,
capelas de prostíbulo
um genocídio por signo;
Um cemitério climatizado
universidades da putrefacção,
um eunuco apaixonado
chatos de elite e estimação...

Uma hóstia-supositório
mumias com nervos em franja,
Férias pagas no purgatório
arsénico com sabor a laranja;
O homem autónomo perfeito
parafusos, cabos e canos
uma bomba eléctrica no peito
a boca fundida ao ânus.

Répteis de sangue quente
A puta que Deus não pariu...
Um deserto de gente
A realidade a sangue frio.

No DRAGOSCÓPIO.

30.5.05

Mínimas Máximas Irrelevantes (de um lunático, por descobrir)

Semelhante à conversa, também os pensamentos podem ser como as cerejas: se um surge, outros o sucedem, e se não temos cuidado com alguns deles, acabam por nos manchar as mãos.

27.5.05

Prosa Insana # 15

Longe vão os tempos em que elas (e só elas) passavam pelas torturas da cera em nome da estética, pelas depilações, pelos minutos perdidos em frente ao espelho massajando o rosto com as panaceias que mais não são que placebo mais ou menos eficaz que enche a vista de quem quer ver a pele dar sinais da juventude que se esvai, tentando apagar dos olhos os pés de galinha e as rugas que a(s) crise(s) vão vincando. Agora, agora também eles passam pelas manicuras, pedicuras e depilações várias, para que peito com pêlo se torne "imberbe". E são elas que os instigam, babadas e hipnotizadas pela beleza instituída, construída na máquina da publicidade, essa fábrica da ilusão, agente máximo da insatisfação, promovendo a imagem de marca do que deve ser um símbolo de beleza, com músculos em sítio certo e em certo sítio, sem pêlo no dorso, que isto de macacos e gente com pêlo só se for na venta, onde realmente faz falta, mas mais no sentido figurado, para fazer face e dar a face à competitividade reinante, para não ficar nem atrás nem para trás nesta grave corrida pela sobrevivência. Tudo limpinho, como o senhor do anúncio xis, ou aqueloutro daquele filme que a moda trouxe para o centro comercial, vindo das Américas de todas as novidades, de todos os consumos, tudo fast e bom de mastigar e deitar fora. E eles, cada vez mais elas, cada vez mais por elas, retocam a linha da sobrancelha, limpam aquele fosso em que os pêlos das mesmas se unem, fora da moda, a atirar para o labrego, atávica condição dos pindéricos, essa gentalha sem gosto, sem cuidadinhos com o corpinho que se quer vistoso e limpinho. E eles que não cheguem a casa, já com os irreverentes pêlos a saírem da pele, que elas não permitirão que os seus seios, naquelas alturas que seriam de amor, momentos perfeitos, sejam estragados pelo desconforto das picadelas do peito semi-pelado, com ganas de voltar a ser matagal a desbravar. E se não queres vai a andar, que isto do divórcio comemora os trinta anos e hoje em dia, dizem as estatísticas, em cada dois casamentos um acaba em separação. Acautela-te, pois. Trata lá de seres aquele que ela quer que sejas, ou vais de carrinho, choroso e a pedinchar colo a uma feia disforme, com mais pêlo que tu, até no peito, se a má sorte o desejar.

25.5.05


Max Ernst - After Us Motherhood (1927)

Mestre Rato Responde... Obviamente.

- Mestre-Rato, quais são os bichos a evitar?
- Oh, viandante desprevenido! Na verdade, não confies muito em nenhum, nem nos teus semelhantes, donde não raras vezes vem a pior das ratoeiras. Mas, não falando desses maus ratos, aconselho-te cuidados especiais para com o ancestral inimigo, claro está: o gato. É ele felino traiçoeiro, dengoso, frio, distante e calculista, sempre pronto a deitar de fora as garras e de dentadura sempre pronta a filar. Em relação a ele, calculo, estás tu, sempre, de sobreaviso. Mas há outros, que talvez desconheças as suas manhas. Os cães, por exemplo, são a evitar. Andam em matilhas. São uma tropa que em conjunto caça, que se juntam, farejando todas as oportunidades de ataque, às vezes raivosos e imprevisíveis. Uns polícias! E velhacos! Foge também dos exibicionistas, esses vaidosos pavões efeminados que por todo o lado exibem o seu leque lustroso, para chamarem a si todas as atenções. Já reparaste naquele repugnante porte, ó rato? E naquela cabecita pequena, que pouco pensa, encimada por um penacho, condição única para que tenham cérebro, isto é, para que nele se encaixe aquele risível adorno? E no entanto, tendem para albergar em tão pequena caixa craniana um ego enormíssimo, que os fazem explodir em gritos arrogantes, numa algazarra histérica. Já alguma vez ouviste a sua odiosa melodia? É de vomitar, coisa que a nós não nos afecta, porque, bem sabes, nem que seja por experiência: os ratos nunca vomitam. Outros que deves evitar são os ursos. São uma cambada do pior. Parecem inofensivos, mas chateiam, e atacam, quando menos se espera, destrambelhadamente, sem olhar a quem. Com todo aquele corpanzil gorduroso, não medem a sua força bruta, nem tampouco avisam um ataque. Muitas vezes são desdenhados, mas não te fies! Andam por aí em grande quantidade. Às vezes hibernam, mas a estupidez fá-los despertar do seu pesado torpor, e quando isso acontece, é um desenfreado vê se te avias. Os camelos, esses animais de carga, são más companhias. Que saiba, não atacam, coitados. Contudo, não te aproximes. Imagina com eles muito privares, e tornares-te… um camelo também, com bossas – é boçal, carregando o que ninguém quer carregar, estupidamente. Os burros, esses equídeos domésticos, até têm graça. Deles, nada esperes. Não fazem nem bem nem mal, logo, dá-lhes uns bons-dias, sem mais conversa, e segue o teu caminho. E depois, todas as aves de rapina, com os seus olhitos perspicazes e talentosos, sempre procurando um alvo. São interessantes, rato. Mas cuidado, andam muito por cima. Voam, rato. Vêem o que nunca poderás ver, a menos que estejas preso às suas garras e ainda vivo, antes da morte sobrevir, no seu sábio e tenaz bico.
Eis alguns, resumidamente descritos. Outros existem, mas, para primeira lição, estamos conversados, nobre viandante.

24.5.05

Diálogos de Morte # 10

- Por favor minha senhora, anseio adquirir uma planta carnívora.
- Está no sítio certo, caro senhor. De momento temos estas três espécies diferentes.
- São de boa boca, por assim dizer?
- Não tenho tido reclamações, embora não seja produto com muita saída.
- Ai, sim?
- Acho que as pessoas ficam de pé atrás.
- Nada me espanta. Também as vejo a avançar os pezinhos para dentro dos sufocantes supermercados à procura dos "raids" que também as matam a elas do que procurarem na natureza um mata-moscas vivo, eficaz e decorativo.
- Mas é uma planta esquisita!...
- Ora essa! A boniteza não vai à mesa. E se às maravilhas mil cumpre, que interessa a beleza do animal, salvo seja! Toda a natureza tem o seu encanto. Nem todos podem ser bonitos - desde que cumpram o seu dever, a estética é de somenos.
- Pois… mas as pessoas gostam de coisas bonitas em suas casas.
- Pois eu só gosto de mamarrachos e manipanços engessados. São gostos. Talvez tenda a ver na fealdade a verdadeira essência das coisas. A perfeição, digamos assim, fere-me os olhos.
- Pois… são gostos. E então, qual delas o interessa?
- No alto da minha sinceridade vocifera o veredicto: todas! Esta aqui tem bolsa grande, o que deve ser estômago para devorar varejeiras pré-históricas. Esta é assim mais a atirar para a beleza, e embora lhe franza o sobrolho, parece ser menina para encher o bandulho de melgas… Diga-me uma coisa: ouve-se o derradeiro zumbido dos ridículos alados antes de se calarem de vez?
- Isso, não sei.
- É pena! Em todo o caso, sempre poderei confirmar, não é assim?
- Pois...
- Levo as três, minha cara senhora.
- Faz muito bem. Em minha casa também tenho uma. E agora que o Verão está à porta, são de uma eficácia impressionante.
- Ah, sim!?
- Acabam mesmo com os insectos!
- Não duvido, minha senhora. Deve ser um alívio, calar assim, com grande limpeza, alguns zumbidos insuportáveis, irritantes e até mentirosos. E carne humana?...
- Carne humana?
- Dizem que é manjar adocicado, de agradável degustação. Será que elas gostam, ou franze-lhes as pétalas, ou espinhos, ou dentes, ou lá o que isso é?
- Ah, isso não sei.
- Imagine que me dava para fazer calar uma ou outra boca?... Vamos supor: um ministro, por exemplo. Acha que conseguia livrar-me do cadáver por essas bocas, em vez de encher o gélido estômago do frigorífico, como estupidamente fazem muitos assassinos de ridícula esperteza?
- Mas se você matasse um ministro era logo descoberto.
- Destroçado, lhe confesso: a minha parca inteligência não me havia prevenido para essa evidência. O cego furor da acção aniquila a maturação do pensamento. Mas olhe que há crimes de uma perfeição assombrosa!... Repare bem em todos os crimes contra a humanidade que por todo o lado se observam, muitos deles gozando de impunidade! Quem sabe se...
- Seria descoberto. Toda a gente sabe tudo!
- Também não mente, com mais esse rude golpe no meu plano que, de morto, já cheira a defunto.
- Mas porque não começa por baixo?
- Por baixo?
- Alguém menos conhecido…
- A sua fantasia enche-me as medidas, minha senhora.
- Eu…
- Não me esteja a arregalar esses berlindes negros, minha senhora. A si, não lhe espetava a mesma faca vinte vezes. Tenho outras ambições, quiçá mais desmedidas. Digamos… a bem da Nação!
- Então quer levá-las?
- Levá-las?
- As plantas!
- Pois com certeza. Já lho tinha informado! Este parêntesis ao qual não teve arte para me presentear com uma resposta que alimentasse as minhas (e suas) esperanças não invalida a minha irreversível decisão. Levo-as. E hei-de fazer experiências alimentares nunca vistas entre estes grandes reinos, o animal e o vegetal. E fica esta conversa entre nós, minha senhora. Se os jornais anunciarem o súbito e estranho desaparecimento duma figura de renome, não acredite. A imprensa é o maior viveiro das escandaleiras, imprecisas e nem sempre verdadeiras. E mesmo que verdade seja, os seus belos lábios só se abrirão para dizer: Como foi este "Bem" possível de acontecer! Certo? Certo. Bem-haja, boa vendedeira.

23.5.05

Acomodarmo-nos? Nunca! Foda-se!

Os anónimos têm esta coisa: são gajos chatos, pá. Gajos que não se calam, que não dormem; muito pelo contrário: estão atentos, os que estão, claro está, porque há de tudo, como sempre e em tudo e em todo o lado. E quem não dorme sobre as coisas ou procura um "alívio", diz: Foda-se! Aqui.

20.5.05

Prosa Insana # 14

Que pesadelo dantesco, toca! Vi todos os humanos sem casa, loucos, de um lado para outro, atarantados, caminhando de gatas, porque já não sabiam andar. Vi-os pedirem abrigo em grutas e até em minúsculas tocas de telúricas paredes, para se abrigarem dos presságios das intempéries que liam nas nuvens. E diziam que as nuvens haveriam de escrever a palavra morte. Morte por todo o lado. E eles de gatas, aos milhões, esquecidos da tecnologia que os animara, que os incapacitara. Pediram ajuda a cobras e lagartos. Tentaram matar um elefante para lhe roubarem a memória, mas os que se aventuraram foram esmagados pelo animal. Tentaram unir-se, para em grupo se defenderem e atacarem, mas cada um já só via a sua fome, o seu coração, o seu umbigo. Incapazes de se darem, sem ter o que receber. E do umbigo das crianças cresciam sem cessar cordões umbilicais que procuravam, cada um por si e às cegas, o ventre materno correspondente, numa ansiedade de voltar a nascer, de voltar para o útero protector. Milhares de homens morreram asfixiados pelos cordões que os enforcaram; milhares de mulheres foram esventradas pela furiosa onda de urgente protecção, protecção eterna. Choravam. Todos choravam no lamaçal dos seus queixumes. Queriam gritar por um deus cujo nome tinham esquecido. Queriam injuriar um deus que nunca nascera. Um espectáculo aterrador, toca, sobre um inclemente céu azul, onde o astro-rei ardia. Dizem, e com razão, que os pesadelos não podem ir até ao fim porque no cume da nossa angustia acordamos. Mas eu, talvez por ser rato, vi o fim. E, se calhar, ainda bem. Vi os homens rastejarem por comida, vi-os na frustrada tentativa de se digladiarem, embrutecidos e animalescos, com os paus que já não sabiam manusear. Vi-os tombarem. Encolheram. Paradoxalmente, os mais fortes tornaram-se vermes. Foi então que os animais se acercaram deles. As hienas riam, os diabos da Tasmânia gritavam, os corvos cantavam, todos num tumulto impiedoso. E de repente, no e do caos, nasceu uma rapariguinha a quem chamaram de Tr-eva, tal era a confusão que os invadia. Quiseram encontrar um rapaz, igualmente recém-nascido, «para os unir», diziam. De gatas o procuraram, com um olho na terra e outro no céu, temendo a palavra morte, que as boas nuvens ainda não haviam escrito. A trôpega busca terminou quando encontraram uma mulher grávida, muito fraca. «Pare», gritaram. Os diabos riam, as hienas gritavam, os corvos sobrevoavam. A mulher gemia, sem forças. «Pare». E ela, exausta, no meio da nervosa assistência, tentando expelir o salvador. Até que o seu último suspiro foi o primeiro da criança que todos quiseram fazer chorar. E ver. O sexo. Um rapaz. Nado-morto. Gritaram. Quiseram morrer. Todos, ali mesmo. Imploraram para que os fiapos de nuvens se unissem e tricotassem a palavra que antes temiam. Agora queriam o fim. Queriam que a terra explodisse, ou se abrisse uma fenda, um abismo para o qual pudessem mergulhar. Então, chegaram as nuvens. Todos gritaram: «morte». As hienas engasgaram-se, os diabos choraram, os corvos desapareceram. As nuvens escreveram: «Esperança».
E eu, toca; eu acordei.

19.5.05


The Schneider TM - "The Light 3000" (Download Now)

Eu sabia, eu sabia: Mais Vale Ser Rato!

"Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.
Ao crítico deu ele, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a calinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários (...)
Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código. Paciente em aguardar, manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer de agonia dela uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo; ora fingindo que lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, até a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato - isto é o animal de trabalho, o animal de ataque e o animal de humor e fantasia - porque não escolheremos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro ..."
[Fialho de Almeida, Meus Senhores Aqui Estão «Os Gatos»]
Tal qual lá está , no Almocreve das Petas, a quem aproveito para felicitar pelo segundo aniversário. Parabéns.

18.5.05


Jean Dubuffet - The Cow With Subtile Nose (1954)

Até Tremo...

No Diário de Notícias:
Embora não seja muito correcto, deixem-me que vos diga: pela resumida descrição, esta audaciosa adaptação cheira-me a esturro. E também me cheira a odores mais... azedos. E até a algo mais funesto – assassinato, amplamente justificado, depois de "cheirar a esturro", que é como diz o dicionário: "estar uma pessoa prestes a exaltar-se; antever problemas". Mas, enfim, nada de falar sem ver, nada de primeiras impressões, de especulações. Fica a nota. Em Junho, dia 13 (que número!), aquando da estreia prevista para esta arrojada produção ao nacional, logo se testemunhará (mas com olhos de ver) o que, e sobretudo como, se adaptou a obra do grande Eça de Queiroz. Para já, para já, não me sai da cabeça esta pergunta: A existir, como vai ser um padre Natário; ou um cónego Dias; ou mesmo um João Eduardo, ele que não poderá deixar de aparecer nesta adaptação?
(pensamento: Quimbé? Quem é Quimbé? Desse não me lembro! A minha memória não é lá muito boa, enfim, mas quase que jurava que esta personagem não... Não, devo estar enganado... Hei-de ver se... Quimbé? Quimbé...)

"Solemnemente" (1935)

Solemnemente
Carneirissimamente
Foi approvado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.

Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do conselho,
Chefe de infernanças animaes,
E astro de um estado novo muito velho.

Que quadra
Isso com qualquer coisa que se faça?
Nada.
A Egreja de Roma ladra
E a Maçonaria passa.

E elles todos a pensar
Na victoria que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p'ra o Salazar
Que é a puta que os pariu.

Fernando Pessoa

16.5.05

O Regresso da Cabala

Quando todos nós pensávamos que não mais ouviríamos a palavra cabala, tão popular nos conturbados tempos mui escandalosos em que o PS era oposição, na altura chefiado pela estranha figura do digno senhor Ferro, eis que agora, ela, a palavra cabala, regressa, associada a outra figura, mais esotérica, celebridade histérica, que volta a trazer para a boca do mundo esse delicioso vocábulo, entretanto injustamente esquecido no rico léxico nacional. É essa figura um tal de João Chaves, que, a partir do ambiente rural controlado pela tecnologia do directo, promete divulgar a palavra, e espalhar a doutrina, nessa caixa que mudou o mundo, para pior. E assim, de pior em pior continuará, se rodar este mundo como tem rodado – sobre si, no sentido inverso ao andamento dos ponteiros, quando eles, os ponteiros, existem, nos ricos Rolex. Mas esta cabala - desenganem-se os caçadores de escândalos - não trás polémica no bico. É outra cabala, com grande Cê. Pacifica, religiosa e interpretativa.
Esta Cabala há muito que existe, e disso sabíamos, mas nada como a mediatização para a tornar religião. Era do que precisávamos, meus amigos. Neste mundo, quanto mais palavras, quanto mais vozes existirem, melhor. É que andando isto tão perdido, mesmo a pedir perdição, é de todo em todo aconselhável que existam vários reinos, para que cada um consiga encaixar-se, achar-se, acalmando a alma, e descobrir apaziguamento nesta grande insegurança em que a falta de crença alastra nos consumidos (e consumistas) espíritos humanos. Já sabem: passem a palavra…

Mestre Rato Responde... Obviamente.

- Rato-Mestre, que conselho daria aos jovens ratos incautos que por aí calcorreiam neste perigoso mundo?
- Ó nobre viandante, mesmo não sendo eu o melhor animal para aconselhar, dir-lhes-ia uma coisa simples, sem grande ciência, que todos, incluindo tu, já sabeis: cuidado com as ratoeiras!

14.5.05

Primeira de Duas Vacas


Franz Marc - Yellow Cow (1911)

Prosa Insana # 13

Toca, já me cheira ao Verão. Não tarda, e o sério calor bate-nos à porta. É dizer-lhe: faça a fineza de entrar. Entre que eu já estou prontinho para esta estação das quenturas, de corpinho seco para o torrar à beira-mar, isto se arranjar uma nesga de espaço livre no litoral apinhado de banhistas vindos dos quatro cantos do mundo, com ganas de desfrutar do Sol ao preço da chuva neste maltratado jardim turístico, entregue à espertinha ervinha daninha, que por todo lado irrompe. Entre senhor Verão, que eu já estou magrinho, com graça, graças à crise que grassa, à qual se juntou a minha forte vontade de consumar a dieta light, numa febril irritação consumista, em meu ser, nunca vista. Sim, porque embora escasseie o vil metal, não vive o corpo sem alimento. Light. Tudo light: manteiga, iogurte, bolacha, chocolate, donut, literatura. Sobretudo a literatura. Light e mini, ou micro. Sim, porque lá por o produto ser dietético, não se deve abusar. Numa dieta rigorosa não basta contar calorias, é preciso pesar. Pesar tudo o que chega à boca do estômago - sempre pouca quantidade. E no que à literatura diz respeito, digo: Nunca mais de quinhentas palavras por dia, com folga ao fim-de-semana. Até porque é o exercício essencial, logo, não se deve estar mais que quinze minutos alapado, com os olhos atrás dum grande livro, capaz de nos provocar uma indigestão letal. E, imagina, toca: eu, mortinho pelos banhos, e já sem corpo que banhar. A alma, a ficar, tanto quanto a minha estupidez saiba, não ocupa lugar, nem terá ânsias de banhos tomar. Portanto, toca, é continuar com a dieta, e esperar pelo ardente calor da estação, que promete queimar.

12.5.05

Mínimas Máximas Irrelevantes (de autor desconhecido)

A ingenuidade, quando é santa (santa ingenuidade), deve ser perdoada.

Devendra Banhart
mp3 (Be Kind)
mp3 (The Body Breaks)
mp3 (Cosmos and Demos)

Link

11.5.05

O micro-conto

Eis que se desenvolve com algum aparato um género literário de se lhe tirar o chapéu. É mesmo caso para lhe fazermos vénias, sem achincalhamentos nem falsidades. É um grito pequeno mas de grande alcance. É coisa miúda mas para graúdos. É micro, mas de grande profundidade. É o micro-conto. Uma saborosa rapidinha literária que decerto irá cativar grande parte do público nacional que, bem se sabe e vê, é pouco dado a grandes leituras, muito menos aquelas cujo o louco autor tenha talento e paciência para enredar personagens e pensamentos que encham mais de duzentas páginas. Vai-se dar, não duvido nem um bocadinho, uma incrível explosão de novos escritores e novos leitores, principalmente no seio dessa gigantesca classe dos atarefados e enfadados que dizem até gostar de ler, mas que, coitados, adormecem na segunda página. Para esses, suponho, o micro-conto, em franca expansão, vai ser um género de salvação, um rico alívio na consciência torturada, por tanto quererem ler, com tão pouco tempo para o fazer.
Pois eu, astuto aspirante a micro-escritor, deixo aqui uma singela contribuição, obviamente não sujeita a concurso, por um minúsculo escrúpulo de me achar (ainda) um remeloso aspirante, um aprendiz de feiticeiro, sem poções mágicas de sucesso garantido nas algibeiras, nem artes na cabeça e nas mãozinhas que me levem a produzir qualquer coisa que se possa apelidar de obra. É coisa medíocre, dirá com legitimidade o prezado leitor. Corroboro-lhe a sentença. Mas como primeiros passos dados em ciência por conhecer, talvez haja, aqui ou além, uma ou outra palavra em que se note as minhas francas, embora ainda fracas, reconheço, capacidades de um destes dias progredir em direcção do brilhantismo que por ora ainda se vê, salvo seja, opaco. E sem mais rodeios, com as faces ruborizadas, aqui fica a primeira experiência que, não parecendo, me levou trinta minutos do tempo que voa, podendo eu estar refastelado no sofá a ver um pedaço de novela, ou a empanturrar-me com qualquer petisco fast.
O Homem (primeiro micro-conto de um anónimo)
Ele entra numa casa. Sai, com as mãos ensanguentadas. Dirige-se, nervoso, a toda a brida, para um café. Quando entra no café, as pessoas olham, desconfiadas, com as órbitas presas nas mãos daquele estranho homem. Ele disfarça. Pede um café. Comenta: como me sabe bem um cafezinho numa pausa de talhante, cansado de cortar tenra carne. As pessoas sorriem, aliviadas. Ele rosna: idiotas.

10.5.05


Max Ernst - L'Ange du foyer ou Le Triomphe du Surréalisme (1937)

Sem Penas

Para ser sincero, o homem já começa a enfadar-me. Mas, numas arrumações, encontrei um livrito dele, escrito nos anos setenta. Chama-se o livro "Sem Penas". Chama-se o autor Woody Allen, aclamado realizador, músico e também escritor. "Sem Penas" é um livro com pequenas histórias, desiguais, ao estilo do que a personalidade nos tem oferecido ao longo da sua carreira nas diversas artes. Aqui fica uma dessas histórias.
Um Guia Breve, mas útil, da desobediência Civil
"Para fazer uma revolução há duas coisas indispensáveis: alguém ou alguma coisa contra que se revoltar e alguém que vá para a frente e o faça. A indumentária é geralmente informal e ambas as partes podem mostrar-se flexíveis em relação à hora e ao local, mas se uma das facções não comparecer é provável que todo o empreendimento fracasse. Na Revolução Chinesa de 1650 não compareceu nenhuma das partes, o que causou a perda do depósito feito.
As pessoas ou partidos contra os quais a revolução é feita denominam-se «opressores» e reconhecem-se facilmente por parecerem ser os únicos que se divertem. Geralmente, os «opressores» vestem fatos, possuem terras e põem os rádios muito alto até às tantas da noite sem que os insultem. A tarefa deles é manter o status quo, uma situação em que tudo permanece na mesma, ainda que tenham vontade de pintar de dois em dois anos.
Quando os «opressores» se tornam demasiado ríspidos temos aquilo a que se chama um estado policial, onde todas as dissenções estão proibidas, tal como o está rir entre dentes, aparecer com um laço ao pescoço ou chamar «Bucha» ao presidente da Câmara. As liberdades civis num estado policial estão muitíssimo limitadas, e a liberdade de expressão é desconhecida, apesar de ser permitido utilizar mímica num relatório. Não se toleram opiniões críticas sobre o Governo, especialmente a respeito da forma como os seus membros dançam. A liberdade de imprensa também está limitada e o partido no Poder «controla» as notícias, permitindo aos cidadãos ouvir unicamente as ideias políticas aceites e os golos que não provoquem desassossego.
Os que se revoltam são conhecidos por «oprimidos» e geralmente podem ser vistos movendo-se em grupos, a resmungarem ou a queixarem-se de dores de cabeça. (Há que assinalar que os opressores nunca se revoltam ou tentam transformar-se em oprimidos, porque isso acarretaria mudarem de roupa interior.)
Alguns exemplos de revoluções famosas:
A Revolução Francesa, em que os camponeses tomaram o Poder pela força e mudaram rapidamente as fechaduras das portas do palácio para que os nobres não pudessem voltar a entrar. Depois fizeram uma grande festa e banquetearam-se à grande. Quando os nobres finalmente recuperaram o palácio viram-se obrigados a fazer limpeza e encontraram muitas nódoas e queimaduras de cigarro.
A Revolução Russa, que fermentou durante anos e estalou de repente quando os servos finalmente perceberam que o czar e o tzar eram uma e a mesma pessoa.
Convém lembrar que quando uma revolução acaba os «oprimidos» frequentemente assumem os Poder e começam a actuar como os «opressores». É claro que a partir dessa altura é muito difícil contactar com eles pelo telefone e é de esquecer por completo o dinheiro para cigarros e pastilhas elásticas que emprestámos durante a luta.
Métodos de desobediência civil:
Greve de fome. Aqui, os oprimidos renunciam a comer até que lhes satisfaçam as suas exigências. Os políticos traiçoeiros deixam frequentemente biscoitos ao alcance da mão ou talvez mesmo queijo cabreiro, mas tem de se lhes resistir. Se o partido no Poder consegue que o grevista cama, é-lhe geralmente fácil sufocar a insurreição. No Paquistão quebrou-se uma greve da fome quando o Governo fabricou uma vitela cordon bleu extraordinariamente requintada, que as massas acharam demasiado atraente para ser recusada, mas pratos de gourmet como esse são raros.
O problema da greve da fome é que passados vários dias pode-se ficar muitíssimo esfomeado, especialmente quando carros de som são pagos para percorrerem as ruas dizendo, «Hum… que frango tão bom. Hum… que ervilhas… Hum…»
Uma variante da greve da fome para aqueles cujas convicções políticas não são tão radicais consiste na recusa em utilizar cebolinho. Este pequeno gesto, quando utilizado a propósito, pode influenciar brutalmente um Governo, e toda a gente sabe muito bem que a teimosia de Mahatma Gandhi em comer apenas salada sem tempero envergonhou de tal maneira o Governo britânico que o levou a fazer várias concessões. Para além da comida há outras coisas de que se pode desistir: jogar whist, sorrir e ficar ao pé-coxinho imitando um flamingo.
Greve sentada. Uma pessoa vai para o lugar previsto e senta-se, mas é preciso sentar-se bem sentado. Caso contrário fica-se de cócoras, posição que não tem qualquer impacte político a não ser que o Governo também esteja de cócoras. (Isto é raro, ainda que um Governo se possa ocasionalmente agachar quando está frio.) O truque consiste em permanecer sentado até que se obtenham concessões. Mas, tal como a greve da fome, o Governo tentará utilizar processos subversivos para fazer o grevista levantar-se. Podem dizer: «Ora bem, todos de pé! Vamos fechar.» Ou: «Podem-se levantar só por um minuto? Só queremos ver que altura têm!»
Manifestações e marchas. O objectivo essencial de uma manifestação é que seja vista. Daí o nome «manifestação». Se alguém se manifesta em privado, na sua própria casa, tecnicamente não se pode considerar isso uma manifestação, mas apenas «armar em parvo» ou «fazer figura de burro».
O Boston Tea Party foi um excelente exemplo de uma manifestação, em que americanos ultrajados, disfarçados de índios, lançaram à baía chá inglês. Mais tarde, índios disfarçados de americanos ultrajados atiraram ingleses verdadeiros à baía. A seguir, ingleses disfarçados de chá, atiraram-se à baía. Finalmente, mercenários alemães, envergando apenas a indumentária de As Troianas, saltaram para a baía sem razão aparente.
Quando se faz uma manifestação é bom levar um cartaz exprimindo o que se pretende. Sugestões para algumas pretensões: 1) baixar impostos; 2) subir os impostos; 3) deixar de sorrir aos Persas.
Outros métodos de desobediência civil:
Parar em frente do City Hall e entoar a palavra «pudim» até que as nossas exigências sejam satisfeitas.
Engarrafar o trânsito levando um rebanho de carneiros para a zona comercial.
Telefonar aos membros do establishment e cantar «Bess, agora o meu amor és tu» ao telefone.
Vestir-se de polícia para saltar à corda.
Disfarçar-se de alcachofra e beliscar as pessoas ao passar.
Sem Penas, Woody Allen

Por Outros Lados

Prosa Insana # 12

Queria que aqui estivesses. Queria que me visses assim: anichado a um canto, brutalmente atingindo pelo coice dessa besta chifruda, dessa insegurança rabuda que bufa mau génio. Dessa que nos paralisa, que morremos para a matar, que suamos para a estrangular, mas que sempre sobrevive nos recônditos ninhos mal construídos pela fraqueza em que ela, a besta segura em incutir insegurança, renasce de qualquer miúda cinza. Queria que me visses, sim. Para que compreendas. Para que te fortaleças. Para que nunca te deixes vergar. Para que nunca a tua recta coluna se liquefaça. Para que te vejas sempre hirto no espelho das tuas ambições. Para nunca te deixares vencer pelo desconforto da dúvida, das interrogações inconsequentes, dos quês sem porquês. Para que vejas que esta figura inerte, ao canto paralisada pela moleza em que a insegurança se compraz e com ares de carneiro mal morto entre a carneirada que pelo mesmo caminho se deixa levar, é carne a desprezar. Despreza-a tu!

9.5.05

Recado

Sempre clarividente, Luís Delgado, mui atento analista de espírito sagaz, faz o favor de explicar à direita, em recadinhos escritos, o que falta a essas forças políticas sem governo. Falta-lhes tudo, amigos! Não há oposição. Anda o Governo à solta, dizendo e desdizendo, enquanto a cega oposição procura luz na conduta, na escolha de líderes, na escolha de candidatos de bem com a Justiça para combates futuros, numa aflitiva desordem onde reina a apatia. Ainda por cima com coisas chatas a resolver, originadas por duas ou três cabeças desobedientes, que temerariamente teimam em avançar para o combate político, mesmo sem o aval do partido. Isto na direita laranja, porque a outra anda tão perdida, que nem se avista líder que reclame, que importune. Assim, meus amigos, não dá. E se disso ainda não se tinham apercebido os senhores da direita, sempre há quem os lembre, quem os guie, chamando-os à razão, em vez de andarem a discutir minudências sonolentas que só reforçam o bem-estar do Governo. E o povo, que pensará o povo que não ouve uma voz dissonante? Que de nenhuma boca ouve uma argumentação, um confronto ideológico, ou mesmo uma sombra de polémica que agite esta vida política que dormita na lenta vaga socialista? Também o povo precisa de guia, de ver em quem depositou o voto uma atitude guerreira, forte, nas ideias e na língua! Que o recado dado, não caia em saco roto, hem! Mudem lá "a táctica" enquanto ainda "existe tempo suficiente"…

5.5.05

Diálogos de Morte # 9

Amigos leitores,
Lembram-se do homem a quem apareceu qualquer coisa no céu-da-boca? Pois bem: há novidades. Serão cantadas pelo doente e a doutora, ela que se pronunciará em itálico.
- Então, como está?
- A treinar para falar como um ventríloquo, sem abrir esta boca de duas campainhas.
- Deixe cá ver. De facto, já se nota.
- Já se nota?! É um horrível apêndice de se lhe tirar o chapéu. Não há quem o não note. Se me descuido a sorrir em frente de alguém, começam logo com as suas cabecitas de catatuas a pender para um dos lados, à espera que o cérebro reconheça o que os olhos vêem.
- Não é assim tão estranho.
- Diga-me o nome e a morada de um outro ser com esta coisa não-estranha e eu formo já a associação dos amigos das duas campainhas em uma boca só.
- Há coisas piores.
- Tem razão, há coisas bem piores, mas em nós qualquer coisa vulgar atinge a gravidade que aos olhos doutrem, de campainha única no sítio devido, parece ser insignificante. De mais a mais não há certeza de que esta presumível campainha esteja fora desse mundo das coisas piores.
- Tem dores?
- Não, dores não tenho. Aliás, os comprimidos que me receitou parece que impulsionaram o crescimento desta carranha como aos suínos aparece. E é incómodo, muito incómodo. A língua está sempre a roçar neste estranho pedaço de carne, como se fosse um verme viscoso. A comida enrola-se no verme ao ponto de não saber ao certo o que como… e dificulta-me a mastigação. E já me custa falar. As palavras enrolam-se, a dicção já não é a mesma, a língua toca na campainha e os sons ficam presos…
- E os efeitos secundários?
- Efeitos secundários?
- Dos comprimidos!
- Pruridos por todo o corpinho, senhora doutora, como se a sarna se me entranhasse na pele. Até a campainha parece querer vibrar.
- Tenha calma. Só para a morte não há remédio.
- Que se pode fazer a isto?
- Vamos estudar a situação, avaliá-la para se tomar a melhor solução.
- Tem ideia do nome desse tal melhor?
- Ainda não. Talvez cirurgia, se for aconselhável, caso outra opção não se revele mais indicada. Mas olhe que tem aí uma úvula perfeitinha.
- Uma anomalia perfeita! Se isto faz algum sentido… ainda por cima com esse nome técnico tão sugestivo, mesmo a pedir os mais fantasiosos trocadilhos. Por alguma razão Deus não nos criou com duas coisas destas plantadas no céu-da-boca.
- É crente, Sr. M.?
- Já não sei, senhora doutora. Não sei em que crer. Acreditar no Bem ou no Mal? Quis Ele que isto me aparecesse? Porquê? Quer Ele me punir? Que fiz? Antes disto já acreditava pouco em muitas coisas, agora estou ainda mais confuso. Só vejo o Deus punitivo.
- Vejo que está um pouco perturbado. Se calhar é melhor marcar uma consulta com um psiquiatra ou com um psicólogo enquanto se desenrola este processo.
- Quero lá saber dessa classe de ouvintes, doutora!
- Acho que lhe fazia bem.
- Não duvido. Adormecido pelas drogas, com certeza que via na segunda úvula como carinhosamente lhe chama, uma invejável bênção.
- Tenha calma. Não é assim tão grave.
- Vamos acreditar que não é grave uma coisa sem nome certo nem registo na ciência.
- Vai fazer estes exames para vermos mais pormenorizadamente o que aí tem.
- Exames? E, entretanto, em que pensar? Que tenho uma úvula quase a beijar os dentes?
- Parece-me bem, mas em tom de suspeita: talvez seja…
- Olhe, quer saber? Não faço eu exame algum. Não sabe o nome desta perfeita anomalia, não é assim? Pois muito bem, se é perfeita, hei-de andar por aí passeando a aberração. Passe bem.

Mais Vale Tarde...

"A casa renascia das suas cinzas e eu navegava no amor de Delgadina com uma intensidade e uma alegria que nunca conheci na minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez o meu ser natural enquanto decorriam os meus noventa anos. Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era prémio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reacção contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio. Descobri, por fim, que o amor não é um estado de alma mas um signo do Zodíaco. "
Memória das Minhas Putas Tristes, Gabriel García Márquez

2.5.05