31.12.04



Pavement - Spit on a Stranger,
do LP Terror Twilight (1999)


Pavement - Greenlander,
do LP Slanted and Enchanted (1992)

30.12.04

A todos, obrigado

É esta época festiva muito propícia a resumos onde desfilam acontecimentos e desgraças que marcaram o ano cuja morte está anunciada para amanhã, na exacta altura em que doze fortes badaladas acabam com o pobre 2004, passando-o, de um segundo para o outro, para a História. Também nesta altura irrompem as listagens com os melhores disto e daquilo, sentenças atribuídas por algumas sumidades de serviço que agora dão a conhecer os merecedores de prémios, mesmo que simbólicos. Prémios ditados pela grande justiça dos juízos feitos ao longo do longo ano pelos juízes responsáveis pela atribuição dos galardões. Aqui pela blogosfera parece que também a moda pegou, com um sem-número de tops, tendo como altos critérios nas escolhas, assim me parece, a sensibilidade e os gostos pessoais, ou o respeitinho (bem bonito, como se sabe), ou, quem sabe?, tendo em linha de conta as contagens das caixas em explosão de comentários ou ainda segundo outros números que atestam a popularidade dos "bons blogues".

Aqui, onde há "rato", foge-se das listas e listagens, mas não se esquece o bom animal de todos aqueles que desde a abertura desta humilde toca tiveram a simpatia de adicionar este blogue de estranho nome, se não feio nome!, aos seus links. Assim, ao Almocreve das Petas, António Reis, Binoculista, Blogame Mucho, Classe Média, Desafio: Escrever, Dragoscópio, Esperando o tal Godot, ou isso, Fala Barato, Ma-Schamba, O Olho do Girino, Roda Livre e Razão Impura (entretanto apagado), obrigado. Para todos, um Feliz Ano Novo. E, de todos, um abraço especial para o Dragão, o Miguel Cardina, o Mário Gomes, o JPT, o Dodo, o Masson, a Lolita, o Besugo e restante equipa.

Não me esqueço, obviamente, de todos os leitores que por aqui passaram, a quem desejo, igualmente, um Próspero Ano Novo.

27.12.04


Jerry Uelsmann - Floating Trees

24.12.04

PROSA INSANA - Especial de Natal

Fosse a memória de rato como dizem ser a de elefante e o Natal seria aquela época em que o murídeo, mais velhinho, recordava os tempos da mágica infância, os tempos das reuniões familiares em alturas de acreditar no Pai Natal que da chaminé descia para ofertar sonhos escritos em cartinhas com miúda letra de miúdo. Ora, sendo a memória neste pequeno cérebro roída por outros bichos, caprichosos e sem nome, resta a memória do "hoje em dia", no dia em que o pai bate à porta desta toca trazendo doçaria tradicional no afectuoso braço, forte e esperançoso de receber abraços como presentes dos presentes familiares que em união se encontram para celebrar nascimentos na noite longa. Que venham. Que venha o pai, os do sangue, os dos outros sangues. Que entrem também vocês que de vez em quando por aqui passam para vos dizer: Feliz Natal, pessoal!

22.12.04



(...) "Em 1913 parti para o norte com uma grande expedição. Instalámo-nos na Ilha de Baffin e, quando não estava ocupado com a exploração, filmava alguns esquimós que viviam connosco. Não tinha experiência cinematográfica e os resultados não foram famosos. Mas como ia realizar outra expedição, arranjei mais negativos para desenvolver o primeiro filme. Mais uma vez, entre explorações, continuei a trabalhar no filme. Após muitas dificuldades que envolveram a perda de uma lancha e o naufrágio do nosso barco, obtivemos um filme notável. Por fim, após passar um Inverno nas Ilhas Belcher, eu e o comandante, um mestiço de Moose Factory, partimos para a civilização, com as minhas notas, mapas e os filmes. Tinha acabado a montagem do filme em Toronto, quando os negativos arderam e fiquei sem nada. No entanto, a prova montada não se queimou e foi mostrada várias vezes, o suficiente para eu perceber que não era boa. Mas percebi que se pegasse numa única personagem e fizesse dela exemplo dos esquimós como os conhecia há tanto tempo e tão bem os resultados valeriam muito a pena. Voltei ao Norte, desta vez só para fazer o filme. Levei não só câmaras mas equipamento para revelar e projectar as imagens para que a minha personagem e a família entendessem e apreciassem o que eu fazia. Assim que viram os primeiros resultados, Nanook e a sua gente renderam-se. Por fim, em 1920, achei que já tinha filmado cenas suficientes para fazer o filme e preparei-me para regressar a casa. O pobre Nanook começou a rondar a minha cabana falando dos filmes que ainda podíamos fazer, caso eu ficasse mais um ano. Nunca entendeu por que me dera a tanto trabalho para fazer dele um "grande aggie".
Menos de dois anos depois, soube que Nanook se aventurara muito para o interior, em busca de veados e que morrera de fome. Mas o nosso "grande aggie", tornado "Nanook do Norte", chegara já aos cantos mais estranhos do mundo e mais homens do que as pedras existentes no litoral da terra de Nanook tinham visto Nanook, o esquimó simpático, corajoso e simples."


Assim começa Nanook, o primeiro filme realizado por Robert Flaherty, explorador que na sétima arte fez história ao assinar um punhado de bons filmes. Flaherty é por muitos considerado o "pai do documentário", esse estilo que com ele assumiu contornos narrativos e poéticos. Em Nanook, Flaherty acompanha uma família de esquimós captando a incessante procura por comida numa nómada jornada pela sobrevivência sob o alvo signo da ternura familiar que em ambiente hostil se une nesse outro mundo em que a fortuna são morsas. Soube Flaherty mostrar-nos a bravura e a despreocupação de um povo obrigado a arrancar do gelo a vida, ciente de que viver depende da fortuna de se ser forte, lutando tenazmente pela conquista dos dias. A nós é-nos "sugerido" que vislumbremos no sincero sorriso de Nanook o rosto da felicidade que Flaherty viu em circunstâncias tão adversas, testemunhou e deu ao mundo neste belo filme que vivamente se aconselha.

20.12.04

Inter título de "Nanook"



"Nenhuma outra raça sobreviveria à aridez e ao rigor do clima; no entanto aqui, extremamente dependente da vida selvagem, que é a única fonte de alimentação, vive o povo mais alegre do mundo: os destemidos, simpáticos e despreocupados esquimós. Este filme mostra-nos a vida de Nanook (o Urso), da sua família e da pequena tribo de seguidores, os Itivimuits de Hopewell Sound, no Ungava do Norte, a cuja simpatia, fidelidade e paciência se deve este filme."

Filme: Nanook of the North,1922
Realização: Robert Flaherty

18.12.04

PROSA INSANA # 6

Cara empresa:
Aceito o vosso simpático convite para repasto natalício para o qual fazem a fineza de me convidarem. Mas, como grito último, digo-lhes que a minha carne e osso só estará presente mediante o cumprimento de certas minudências, de pouca monta, claro está, na fina certeza de que estão em condições de serem por vós aceites e cumpridas. Cá vão:
Camarões, só dos tigre. Não me tragam daqueles microscópicos crustáceos decápodes de Sesimbra que a gente nem lhes toma o gosto. Depois, um repasto com iguarias várias confeccionadas pela artística mão de cozinheiro de primeira água. Água, também a quero, mas entre vinho. Caro. Pode ser destas terras do nosso bonito Portugal, se bem que não recusaria boa pipa francesa, coisa assim para o internacional, opção que muito bem lhes fica: boa acção que até pode ser confundida com classe, com bonomia, com prosperidade e outras quejandas. E sobremesas? Quero quatro diferentes, porque não há Natal em que não engorde vinte quilos, para melhor suportar as invernias que o novo ano sempre traz. E este próximo promete ser dos piores. É que, como bem sabem os senhores, vão atirar-me directamente para aquele desamparado estado de desempregado. Nestas temporárias circunstâncias são as reservas de gordura de uma utilidade incalculável, como vossas excelências devem de compreender. E já agora, no fim, para rematar em beleza, um chequezinho com o subsídio da época, não? Ah!, me desculpe, senhor empregador! Já me esquecia que sou um daqueles a verde carimbados, amarrados aos recibos precários. Não há direito, não se tem. Assim é, de facto. Está o senhor dentro da lei, e se nela se embrulha, nada posso eu fazer para lhe arrancar do coração uma pequena justiça. Nem nesta época… tão boazinha!? Mas pronto. Se o cheque lhe pesar, que apareça com um cabaz recheado de víveres enlatados, bacalhau para a ceia do dia próprio, e álcool para aquecer o sangue no ano que está para aí a rebentar.
São estas, cara empresa, dirigindo-me à pessoa do administrador cuja cara nunca lhe vi, as “condições” para que a minha presença abrilhante a vossa festiva jantarada organizada para este Natal.
Com os melhores cumprimentos, um desempregado no futuro.

15.12.04

Nem carne nem peixe: uma coligação às direitas

Apareceram os doutores Santana e Portas juntos para dizerem, à vez, o mesmo: para as urnas, irão em separado, para se juntarem se a força dos votos permitirem formação de governo, a fim de darem continuidade às boas políticas, a meio interrompidas pela injusta decisão do Sr. Presidente, que, dizemos nós, em boa hora acabou com a brincadeira na governação. Assim, separados com claro acordo para reunião, pensam os de direita, aumentam o leque de eleitorado: captam as boas graças dos santos crédulos que ainda acreditam nesta união, aqueles que só querem PSD e aqueles que ao CDS/PP são fiéis. Mas cada um, dizem, lutará pelas suas ideias, sem atacar as diferenças dos amigos, porque amigos serão, se o povo assim o entender. Estão lançados os dados mal pintados que já rodam nas sondagens. São elas o que são, valem o que valem, mas vão dizendo que cada um por si, aumentam o pecúlio conjunto e, com essa soma, talvez consigam mais quatro anos no comando deste Portugal que há um ror de meses anda deprimido. Ora, que façam eles as continhas e as acordadas jogatanas para ao poleiro voltarem. O povo, se lúcido se encontrar, mostrará com quantos votos se desmancham os prazeres da governação. É que, fazendo fé nas actuais intenções de votos, é provável que viremos à esquerda. Dela, da esquerda, por muito que se tente, não há novidade. Não quer o PS entrar em negociações de coligações, na certeza de que, pedindo ao povo uma maioria absoluta, a vão conquistar. Confiam eles na esmagadora fragilidade da parelha que às direitas se entende. Optimistas, estes socialistas, que das políticas sociais (mais educação, mais justiça, mais combate ao desemprego) promete fazer, de todas elas, bandeira de campanha. Mais à esquerda tudo corre como era de esperar. O PC continuará a lutar pelas mesmas causas de sempre, agora com velha cara no novo comando; o BE continuará atento e a beliscar o poder. Mas agora tem o Bloco responsabilidade acrescida: quem sabe se, depois da hora, depois das contas feitas, não serão chamados… para reuniões. Acredita-se que não, mas ainda agora a procissão saiu nesta campanha que se pede serena, mui adulta, bafejada pelas boas brisas da democracia e pelo respeito pelos diferentes ideais que, embora desbotados como é fácil de constatar, regem as cores do pequeno espectro político do burgo, abraçado pelo estrangulador membro da crise. E essa, senhores, não se esqueçam, não vai desaparecer assim, da noite de vinte de Fevereiro, para o dia de vinte, mais um. Votai, pois, em consciência. Conscientes. Tendes tempo para isso.

12.12.04

The Magnetic Fields

10.12.04


René Magritte - L'art de Vivre

9.12.04

7.12.04

Novela à Portuguesa - 2ª Parte

[1ª Parte (Intróito), em baixo]
Assistimos nós ao brilhante enredo em que a tensão está patente e é latente nos casamentos entre forças políticas. Propostas que avançam e recuam. Parceiros que se zangam e fazem as pazes, que consultam as respectivas famílias tomando o pulso das opiniões que ditam as linhas com que se cosem interesses, com o fito de tomarem a decisão última. Um dia estão bem. No dia seguinte estão mal. Num dia andam de braço dado, fortes e protegidos pelo signo da boa estabilidade, no dia seguinte acham que devem de seguir a sua vidinha em separado, cada um para seu lado porque assim é melhor para todos. E neste vai-não-vai, a expectativa mantém o fiel espectador agarrado aos acontecimentos, porque, é sabido: o suspense é uma inestimável arma em qualquer narrativa que se preze e que tenha a augusta intenção de atrair para si a atenção de todos os públicos, os exigentes e os que tudo papam, como a malta diz. Vão juntas ou separadas para o "paredão"?, como diria o grande homem-musculo e actor de alto gabarito vindo das artes brasileiras directamente para uma Quinta portuguesa tornada show rural do mais célebre que há, espectáculo que tanto eleva o termómetro da febril luta pelas audiências. Sim, que vai acontecer? Vão para a(s) urna(S) juntos ou separados? E o sr. Presidente? Quando é que esta ilustre personagem explica ao grande público as sérias razões que o levaram a perpetrar o inefável acto de matar um Governo-bebé sem dar cavaco a terceiros? Ardemos nós em expectativa, mal podendo esperar pelos escaldantes episódios que se avizinham.
Mas de outras famílias vive a novela, outros ramais que se entrecruzam na trama, porque também aqui se entranha o atrevido bichinho da política. São personagens de outra fibra, de outra prosápia: uma brasileira metida no barulho, ela que também é portuguesa, porque, para tornar o conflito mais aliciante, acumula nacionalidades. Brasileira no Brasil, portuguesa em Felgueiras, Fátima promete voltar ao seu mau país mau lá para Março e, num episódio que se espera de grande dramatismo, entregar-se, de mãos vazias, desprovida do enigmático saco azul, entregar-se, escrevia-se, nas mãos da Justiça, tão injusta para com ela. É esta personagem bem construída. Respira povo, é religiosa, de lágrima fácil, parece audaz e tenaz e promete lutar pela inocência que está na sua limpa consciência. E vem para cá, para a sua outra pátria, como já mandou recado em forma de panfleto que circula pelo seu povo de Felgueiras, e logo nesta altura em que o espírito natalício anda à solta, nesta quadra tão propícia ao toque no coração benevolente. E, além disso, tem a certeza de que voltará para governar, desafiando tudo e todos, porque o povo - acredita e pede - está com ela. Com este pulso, quem a vai parar? Mas a dúvida ainda se mantém: vem ou fica? E o povo, como vai ele reagir? Vai apoiar a sua heroína e envolver-se em confrontos com os da lei? Vão ser – não temos dúvidas – episódios de grande interesse. É que por essa altura ainda decorrerá outra história paralela que bem aqui se intromete porque da Justiça também nasce. Casa Pia, claro está. Essa, então, promete ser história sempiterna. Por ora, na Boa Hora, gastou-se dinheiro para albergar jornalistas em salas que, ainda não estreadas, já estão entregues ao bom abandono. É que não é aquele Tribunal adequado para receber o julgamento. Tem de ser outro. Monsanto, talvez. Mas este também não parece querer receber o mediático processo: também lhe falta qualquer coisa. Se a realidade tornada argumentista se lembrar, irá ser na praça pública, onde os arguidos são condenados pelos impropérios e pelas vergastadas da população, sempre pronta para dizer e fazer justiça, e sem dúvidas da pena a aplicar. Com este caso, emparelha um outro, que, à semelhança do do saco azul, também envolve um objecto, ou uma arma, se quisermos inculcar dramatismo. É o tonitruante caso do "Apito Doirado". Muitos episódios irão alimentar os ávidos espectadores. E tem de tudo para ser um sucesso inolvidável: rola na esfera dos futebóis, com a vantagem de abordar o lado negro do desporto reinante no rectângulo nacional. Ainda por cima, conta com personagens recheados de qualidade: papas sem papas na língua (muito dada à ironia, corrosiva e hilariante, que, não raras vezes, são uma e a mesma coisa). Com personagens como o Sr. Pinto da Costa, o sucesso está garantido. Pois é ele o poderoso dragão da grande nação portista que ainda ferve em palavras de ordem tão quentes como aquele histórico e ameaçador cântico que rezava a seguinte tragédia: “só queremos ver Lisboa a arder”, cantoria prenhe de alegre fúria alcoólica. E, já se sabe,: se o assunto toca o futebol, toda a gente está envolvida, desde políticos a treinadores de bancada, desde árbitros a curiosos anónimos, porque não há quem não tenha uma opinião.
Sendo o futebol tão "globalizante", servindo de súmula sem sumo, acabamos por aqui a rápida espreitadela que fizemos à real novela à portuguesa. Acaso o caríssimo leitor tenha tido a paciência de até aqui chegar, talvez desabafe: perdi eu o meu tempo para ler esta porcaria embrulhada em verborreica nulidade e de nada me serviu, nada aprendi, nada se me revelou, com a agravante de não ter fim digno desse nome. Responderá o atormentado autor: assim são algumas novelas. O título da peça não era publicidade enganosa.

Novela à Portuguesa - 1ª Parte (Intróito)

Há de tudo, no enredo da novela à portuguesa. E tudo em muitos episódios, seguindo a vulgar tradição do popular formato ficcional que bebe conhecimentos da inspirada lógica de fazer render o bom material onde alegremente desfilam heróis e vilões bem vincados, não vá o espírito do pobre povo enganar-se e confundir as personalidades das personagens porque é preciso não esquecer: bons, bons são e serão; maus, mal terminarão. Assim são, na generalidade, as teias urdidas pelo arguto argumentista que das massas sorve sabedoria, e delas se alimenta. Mas a novela mais “genuína”, aquela que menos trabalho dá e que, curiosamente, mais sucesso tem obtido junto do grande público [como dizem as célebres gentes que na Quinta (se) governam] é a novela da vida real, essa grande mina inesgotável onde quanto mais se explora, mais insólitos tesouros se encontram. Ora neste modelo real, os vincos de personalidade estão mais esbatidos: os bons também fazem mal; os maus também praticam o bem porque a realidade sabe que a natureza humana é complexa e que as acções têm muito que se lhe diga, com mais leituras do que aquelas que a ficção das telenovelas nos quer enfiar pelos olhos adentro, na lúdica tentativa de nos proteger e entreter, para que esqueçamos a própria realidade, claro está. E é nela, na novela real que mergulhamos, nunca esquecendo o tom ficcional que é o sal do pensamento narrativo, tão caro nestas paragens. Vejamos pois algumas novelas à portuguesa, alguns fios de narrativa que por aí se enleiam. Mas não hoje. Não agora. Novela é assim: amanhã continua, que o mesmo é dizer, no post seguinte.

6.12.04


M. C. Escher - Bond of Union, 1956

4.12.04

A quantas andas, homem?

Porque:
Não querer dizer, não saber o que queremos dizer, não poder acreditar no que queremos dizer, e no entanto dizer, ou quase, eis o que importa não perder de vista, no calor da escrita*:
Julgo que nunca soube a quantas andava. Há muito que não sei quem sou, se é que algum dia o soube. Assim como não sei por onde viajei todos estes anos, sem nome, sem bagagem e sem pertença, arrastando o corpo cansado na névoa do tempo. Sei que tenho estes farrapos andrajosos porque os vejo e os sinto sobre a pele fria mas não sei onde os arranjei. Sei que me alimento porque vivo, mas não sei do que sobrevivo. Sei que a barba me escorre, desgrenhada, por este queixo a baixo porque a sinto, áspera e velha. Mas não sei como cheguei a este fim do mundo, como perdi os sentidos e alguém os acordou à bofetada, gritando: É ele, é ele. Foi ele, acusam-me, que roubou não sei o quê, que tentou fugir não sei de quem nem para onde. Foi ele, acusam-me, que matou não sei quem. Um homem, dizem-me, encontrado com a cabeça esmagada. Fui eu, acusam-me, que, num acto bárbaro, pus a descoberto os miolos daquele homem. Mostram-me fotografias do morto. Ele parece sorrir, digo eu. Sorri, filho da puta? É a única coisa que tens a dizer? Sim, digo eu. Confessas? Não confesso o que não sei, digo eu. Só tu não sabes. Não sabes que andas a roubar por aí qual cão esfaimado? Que matas por comida? Que és um filho da puta dum pária a abater? Olha para este espelho, ordenam eles. Que vês? Um bicho, digo eu. Que nome tem? Homem, acho eu.
*Samuel Beckett, Molloy

3.12.04

Já Ferve o Vulcão

Disse o Sr. Presidente que sim, sim senhor, ficais no poleiro, Santana. Juntai a tua tropa e experimentai o doce poder. Mas cuidadinho!, ficarei de olho em ti porque com estas coisas de governar não se brinca. Ufano e protegido pelas boas estrelas, Santana fez e desfez, prometeu continuar com o cinto apertado mas decidiu dar-lhe mais folga e torná-lo... assim… mais para o lasso, numa elegante piscadela de olho aos votantes, portuguesas à cabeça, portugueses por arrasto. E não se ficou nem se tocou: encetou remodelações sem nome nem tino, e, sem juízo nas coisas do Estado, comparou o seu Governo ao bebé, que, pobre ingénuo, acabou por sucumbir às mãos de quem lhe havia dado a precária vida.
Urras e urros contidos se ouvem pelas ruas numa manifestação de claro apreço pela decisão última do Presidente, assim reconciliado com o soberano povo, essa massa nem dita nem achada nas melindrosas coisas do poder, e que, finalmente, vê a sua oportunidade para fazer do seu voto a lei da democracia que ditará o novo comandante, achado, com certeza, lá para Fevereiro do ano de 2005. E para essa batalha tão próxima já ferve as entranhas do vulcão PSD, muito agitado, muito confundido, sem saber se quer expulsar do seu ventre os "incompetentes", ou se quer trazer até à superfície a boa safra dos antigos "competentes", esses sim, acham alguns, capazes de cuspir a lava que queimará as aspirações socialistas, muito bem colocadas nas sondagens que ordenam as intenções dos nossos votos. Esperam-se, pois, tempos muito agitados nas cores políticas da nação que cambaleia nesta bêbeda indecisão.

1.12.04

Só se o homem mandar IV

Então agora deu-te para isto? Uma rebelião canina em território humano!? Ataques a víveres, indumentárias roídas e casa quase destruída só porque queres cirandar por aí? Já não consegues ficar em casa? Estás com achaques claustrofóbicos, ó quatro patas, tu que andas com estranhas ambições de em duas caminhares. Aonde queres ir desta vez? Queres cheirar o espírito natalício que por aí se respira? Ver aquela árvore gigante, aquela que é a maior da Europa e arredores, carregadinha de luzes? Imagino a energia que aquela merda gastará. Mas acho bem. O povo precisa de se embasbacar com alguma coisa de jeito, em ponto grande, o maior ponto a que conseguimos chegar para parecermos os maiores: árvores monstruosas, babélicos centros comerciais de assombro, tão labirínticos que a gente se perde naquela confusão de lojas disto e daquilo. Nada falta, de facto. Temos de tudo e ainda nos queixamos. Já viste como somos? Nós, os supostos pensantes!? Vamos lá ver aquela grande obra de engenharia, ficar de olhos em bico (as luzes piscarão?), e fotografar e filmar com o último telemóvel da moda aquele iluminado monumento nacional. Ou preferes outros entretenimentos? Que tal ver as decorações das montras? Depois encontrar uma esplanada e ali ficarmos a observar os transeuntes consumidos pelo consumismo. Que tal? Tem de ser uma esplanada. Já sabes - não podes entrar. Qualquer dia também eu vou ter de ficar à porta. Eu, fumador empedernido, que não concebo uma bica sem cigarro. Eu que não posso ler a palavra cigarro, ou cachimbo, ou charuto num bom livro sem que a mão ataque de imediato o maço do tabaco do Camelo, esse que faz mal, mas, até ver, livre do pior dos tóxicos. Eu, fábrica poluidora. Eu, responsável pelas maleitas dos passivos. Ou será que queres assistir às lutas dos da tua raça numa cave com o enjoativo cheiro da clandestinidade? Preferes coisas mais "humanas", quatro patas? Patinagem artística? Socos entre humanos? Concertos rock? Vá, vamos lá passear e assistir a algum espectáculo, ó quatro patas.


Elliott Erwitt