29.10.04

Citação

Onde vou trabalhando, colega meu, tipo inspirado e inspirador, em folha A4 colocou:

“Pobre de mim, a primeira metade da minha vida comeu a segunda.”
Corneille


Pobre de mim!, que ali vou matutando na citação exposta, acossado pelos fantasmas da primeira metade da vida, e perguntando à coragem e ao estômago: ainda vamos a tempo de salvar a segunda?

28.10.04

27.10.04

25.10.04



Pela toca entra um rapazito canadiano carregado de discos e pratos. É Kid Koala. Vem animar o fim de tarde do covil com o descaramento das suas composições e com o desvairado menu scratch. Também vem mostrar-nos os seus desenhos, muito animados pela irreverência com ponta de salutar bizarria. E já os vídeos se projectam na abóbada da toca enquanto os murídeos amigos abanam a cabeça num sim sim drogado, rendidos ao traço dos Ninjas. Ora vejam.

Dos pequeninos vai rezando a história

Pequeno é o país onde a palavra da moda é a cabala, a tramóia que meio mundo ardilosamente tece para paralisar a outra metade, onde o pífio futebol falado motiva e aquece mais fanáticos do que o pobre espectáculo sem qualidade e sem interesse que vai desfilando no pântano chamado com pompa e sem circunstância de super, Super Liga. Pequeno é o país em que as figuras de proa da dita sociedade são provincianos com insuportáveis ademanes finórios desfilando nas sete quintas para entreter a populaça. Pequeno é o país das sestas de políticos mediáticos, perdidos nas ânsias de se manterem no poder oferecido. Pequeno é o país em que os telejornais destacam a nova obra-prima de Mourinho, analisando as excitantes narrativas que nos dão conta das mais importantes reflexões existencialistas, das ameaças de morte que justificam ausências de alegrias desmedidas após feitos históricos. Isto e muitos mais nadas nas grelhas da televisão que alimenta e educa o povo com telenovelas e anedotas, que se debruça exaustivamente, semanas a fio, sobre crimes hediondos. Pequeno é o país em que um Luís Delgado assume protagonismo. Pequeno é o país em que floresce cargos e empregos dos amigos para os amigos. Pequeno é o país em que as tocas municipais estão entregues à prosápia dos dominantes. Pequeno é este jardim, invadido pelas pragas daninhas das farisaicas ervinhas cuidadas pelos bichos que grasnam estultas certezas.
Grande é esse outro país, porventura mais pequenino, mas aquele que interessa, que se interessa e que não se cala.

22.10.04



Marc Chagal - The Cattle Dealer


(...)
Mas numa noite de Outono, quando os ventos ainda permaneciam no céu, Morella chamou-me ao seu lado. Havia um nevoeiro sombrio por toda a terra, um brilho quente nas águas, e por entre as folhas de Outubro da floresta, certamente se formou um arco-íris no firmamento.
- Este é o dia dos dias - disse, quando me aproximei - o dia de todos os dias para viver ou morrer. É um bom dia para os filhos da terra e da vida. Ah, mas um dia melhor para as filhas do céu e da morte!
Beijei a sua testa, e ela prosseguiu:
- Estou a morrer. No entanto, viverei!
- Morella!
- Os dias em que me amarias nunca chegaram. Mas aquela a quem odiavas em vida, irás adorar na morte.
- Morella!
- Repito: estou a morrer. Mas em mim está uma lembrança daquela afeição - ah, tão pequena - que sentiste por mim: Morella. E quando o meu espírito partir a criança viverá - a tua criança e a minha. De Morella. Mas os teus dias serão dias de dor - aquela dor que é a mais duradoura das impressões, como o cipreste é a mais duradoura das árvores. Porque as horas da tua felicidade acabaram e a alegria não se colhe duas vezes na mesma vida, como se colhem as rosas de Paestum duas vezes por ano. Então, não voltarás a jogar o jogo dos habitantes de Teos com o tempo mas, desconhecendo a murta e a vinha, levarás contigo o teu sudário na terra, como os Muçulmanos fazem em Meca.
- Morella! - gritei. - Morella! Como sabes isso? - mas ela virou o rosto para a almofada e, com um ligeiro tremor nos seus lábios, morreu. E eu não voltei a ouvir a sua voz.
No entanto, como tinha profetizado, a sua filha, a quem tinha dado à luz ao morrer, e que não respirou até que a mãe parasse de respirar, a sua filha viveu. E cresceu de forma invulgar em estatura e intelecto, e era um retrato perfeito da mulher que tinha partido, e eu amei-a com um amor mais fervoroso do que alguma vez pensara sentir por qualquer habitante da terra.
(...)

Excerto do conto Morella (1850) de Edgar Allan Poe

21.10.04

É um risco

... a vida vai torta - a vida vai torta - a vida vai torta - a vida vai torta ...

20.10.04

PROSA INSANA # 4

Anos e anos com as putas das insónias às costas. Não me largam. Não dão tréguas. Anos a tentar descobrir as causas deste mal. Anos a fio levados a mitigar as suas consequências. Anos a tentar combatê-la com mezinhas e chás das vizinhas, com valerianas e tisanas de marijuanas, com panaceias em drageias... E elas, as putas, estóicas, ganhando a luta pelo sono. Mas isto vai acabar porque a culpa é - sei-o imprecisamente - do livro de cabeceira. "O Livro do Desassossego" que repousa ao lado do catre doente, com umas páginas lidas e relidas, com todas as outras por desfrutar. É essa a simbólica mãe de todas as preocupações: sem ler o desassossego do Pessoa, não sossego eu. Mas nunca me sinto preparado para tal, tal qual nunca me sinto preparado para tantas outras coisas, nem mesmo para combater a insónia até a matar de vez, ela, a puta que é simultaneamente filha e mãe do mesmo mal: a preocupação funda da preguiça mortal, que, sendo pecado, faz mal. Faz ela e faço eu que não a degolo a cada minuto do tempo porque ela, a preguiça, esperta como um rato, vem sussurrar na minha, essa sim, dormente, consciência:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

LIBERDADE, de FERNANDO PESSOA

19.10.04

"La Maison de Mon Rêve"


Olho para fora da toca, vejo a chuva e lembro-me delas. Elas que, dizem, também viram a chuva, em Paris. Longos dias de chuva que marcaram o reencontro das irmãs separadas do qual nasceu La Maison de Mon Rêve. Gosto do encanto que vai enchendo o dia cinzento. Gosto da simplicidade, da nudez, da guitarra acústica, da harpa que goteja sobre o rádio que marca a calma cadência do tempo. Gosto da chuva, dos pássaros, até dos ruídos que entram pela janela desta Maison. Gosto da tímida flauta. Gosto da emoção que certa vez quase me molhou os olhos, sei lá eu por que estranha partida da alma. Às vezes gosto de me sentir assim. Às vezes gosto de me anichar na toca, encolhido sob o mundo onírico e ficar a ouvi-las. A elas. CocoRosie.

18.10.04

Só se o homem mandar II

Sabes, lindo cão?, na Suiça não é nada assim! Podemos levar-vos nos autocarros. Podes entrar nos restaurantes. Podes passear-te pelos centros comerciais. Imagina: nunca te deixar em casa quando quero encher a pança na tasca da esquina, uma qualquer, igual àquela que deixei de frequentar, aquela, cujo o dono te chamava de fera rafeira, mas muito inteligente, como o são todos, de resto, esses, sem raça. Aquele, o dono do caniche amaricado que ignora a tua vontade de brincar, puxado pelo avaro comerciante. Ali nunca entrávamos, naquela espelunca com ares de coisa antiga, restaurada para atrair o gosto de todas as estéticas. Mas outro sítio qualquer, longe da rua. Apanhávamos o autocarro. Ias sossegado, SOSSEGADO!, sentadinho ao meu pé, esquerdo; sempre pela esquerda, como mandam as regras internacionais. Sim, porque havemos de lá ir. À Suiça. Vais ver os parques onde os donos se reúnem com os seus cães. Onde vocês brincam uns com os outros. Imagino pessoas diferentes daquele dono de tasca, armado em... nem sei em quê... Lá, as pessoas apanham as vossas necessidades. Não são como o do caniche que naquela vez, lembras-te?, me viu a apanhar a merda e sorriu, maliciosamente. Aquele sorriso que diz: "grande palerma, a limpar a merda". Ainda bem que lhe mordeste o tornozelo, quando ele te enxotou do seu estabelecimento, naquela vez em que te desatrelei. Acredita que vou juntar uns trocos e vamos à Suiça. Queres ir?


Elliott Erwitt - Paris, 1988

Danças de Domingo

Já dançam para fora da Quinta as primeiras celebridades que com picos nos pés (ai!, ui!) abandonam a árdua vida campestre. Saem de cabeça erguida e com ares de vedetas que dão ao povo as gargalhadas que estes precisam de soltar para esquecer o caro quotidiano. E é assim: o povo ri-se, o povo sabe, o povo manda, o povo vota, o povo expulsa porque já se sabe: é o povo quem mais ordena. E como tal, por outras paragens, também ordenaram: que o bailinho que por aqui se dança continue a ser o mesmo, que Jardim some quatro anos aos 28 que leva nos comandos da Madeira. Nos Açores também não há mudança que se queira ver: o PS continua a vencer. Mas a mais danças circulares, sem mudança que contradiga histórias recentes, se assistiu neste grande domingo. Em noite de luz, dançaram dragões em peles de adeptos, aquela gente que teve bilhetes, deixaram de ter, voltaram a tê-los e lá entraram na catedral encarniçada que todos temiam ser incendiada. Não foi, não senhor. Nem tão-pouco a Lisboa que alguns dizem querer ver a arder, sem se saber (nem eles, espera-se!) bem porquê. Mas as coisas não podiam ser mornas porque a noite – estava marcada – era também de expulsões. E de confusões: um jogador de cada lado para a rua, avermelhados pela sua conduta menos própria, de pronto repreendida pelo juiz Benquerença, nome extraordinário para o homem do apito que os encarnados acusaram de azulado, chocados com os pés de dança no relvado. E também há novelas de bolas que passaram do risco, de penalidades impunes… enfim, as discussões do costume porque há que viver. E falar. Mas de quê? Dos tristes espectáculos que o povo soberano vê na TV em domingos recheados, já sem Marcelo, para comentá-los.

15.10.04

Só se o homem mandar

Tendo a pequena fera, difícil de adestrar, seis mesitos de idade, recorro a um treinador para educar o lindo cão. Desde logo fico a saber que toda a aprendizagem do canídeo se fará a troco de comida. Se ele fizer bem, será recompensado; caso contrário ficará a salivar, olhando para mim com aquele doce olhar com que me vai convencendo que não rói por mal, que é de sua natureza (e da tenra idade) ser irrequieto, que é de sua natureza o gosto pelas minhas meias, e t-shirts, e mangas, e sapatos... Duas ou três sessões são passadas com o ensinamento das ordens básicas - pára, senta, aqui. Treinar com o animal sempre que vai à rua. Treinar com ele duas vezes por semana, diz-me o treinador. Mais duas sessões e outros ensinamentos: ficar parado, quietinho, imóvel, afastando-me eu e chamando-o de seguida - só à minha ordem o cão sai do hipnotismo em que ficou. Todas estas maravilhas de correcção a troco de comida. Sempre.

A partir daqui ele deixou de ser um cão. O quê? Deixou de ser um cão? Que raio de bicho é este que atrelo como cão? Agora ele só te serve. Para ele, você é mais que um dono. Ele seguir-te-á porque te respeita. Tentará sempre transgredir as regras, mas basta a sua voz para ele obedecer. E quando chegarmos ao dia em que você o mandar deitar e ele o fizer, então aí estará completamente... Domesticado? Mas eu não quero domesticá-lo. Pelo menos nesse sentido! Quero que ele aprenda a respeitar certas regras para melhor convivermos. Para não ter chatices com a vizinhança. Não quero "descaracterizá-lo". Não quero "despersonalizá-lo". Se ele não quiser deitar, não se deita. Só quero que ele não... Meu amigo, o alfa terá de ser você. Eu, um alfa!? Só tenho um cão, não comando uma matilha. Mas ele não sabe. Nem saberá nunca. E como tal tentará dominá-lo. Nos genes dele, digamos assim, só há duas coisas: ou domina ou é dominado. Escolha você o que quer ter em casa. Quero ter um cão que vá aprendendo a "entender-me" enquanto eu o entendo. Um amigo! Não é o que dizem: o melhor amigo do homem. Se o homem mandar! Se homem mandar...


Elliott Erwitt - New York, 1946

14.10.04

The Magnetic Fields



Em actividade desde o início da década de noventa dos idos mil e novecentos, os The Magnetic Fields chegam a Lisboa para um concerto único. Na Aula Magna vão desfilar os campos de acção dos norte-americanos. Campos electrónicos, campos acústicos regados com banjo e demais instrumentos naturalistas que fazem parte do ambiente magnético da banda. A visita está marcada para dia 20 deste mês.

Bilhetes
Track Listing

12.10.04

Clarão do futuro

Portuguesas e portugueses, deixem-se enganar pela luz transmitida na televisão em horas desencontradas nos diferentes canais. É coisa de boa feitiçaria hipnótica e miragem de boas novas, sem ruído. O ruído que se tem instalado sem qualquer razão de ser. Importante é o que têm feito por nós e aquilo que continuarão a fazer: mais pontes de descanso, mais dinheiro para idosos, redução das taxas do IRS. E tudo para já, depois de se ter achado inviável. Mas tudo é possível com este novo clarão vindo da janela do futuro que se anuncia melhor, muito melhor para todos nós. Que se silenciem os ruidosos palradores do contra, porque, com esta imagem de marca, assim nos media luzindo, com a pluralidade desta realidade livre, não há quem consiga desmentir a competência do Governo que por nós zela, trabalhando com afinco. Veja-se as escolas! O ano lectivo arrancou. Ponto. Não correu muito bem. Os putos não têm professores. Algumas escolas (poucas, sempre poucas) têm problemas (pontuais, sempre pontuais), mas temos ou não temos ano lectivo? E depois, nenhum humano que se preze está imune ao erro, essa mancha da imperfeição presente em todos os corpos bípedes, em todas as almas racionais. Erros acontecem. Não os confundam é com actos menos nobres. Coisas como censura, abuso, mentira. Isso não! Eles não merecem. Nem mesmo quando se desmentem uns aos outros, quando se desunham por um lugar ao sol. Afinal, esses pequenos desacertos, esses braços de ferro pelo território do poder também são coisas de ser humano.

"A Brutalidade Dum Governo Perigoso"

Texto de Eduardo Cintra Torres, publicado ontem, no Público. Imperdível.

11.10.04



Paul Klee
- Insula Dulcamara, 1938

10.10.04



LUGAR LUGARES

Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender, claro, etc. E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam. Bom dia, bom dia. E desatavam a correr. É o meu inferno, o meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se homem. E a gente então comove-se, e apoia, e ama. Está mais gordo, está mais magro. E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política. Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco - e que fizeram da dignidade humana? As reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Dêem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico - batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano - diziam as pessoas. Temos medo. E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver. E havia o progresso. Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. Desejavam examinar? Por este lado, se fazem favor. Aí à direita. Muito bem. Não é uma boa revolução? Bem, compreende... Claro, é uma belíssima revolução. E é barata? Uma revolução barata?! Não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. Um bocado cara. Mas de boa qualidade, isso. E o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? Lembras-te? Como foi que ficou assim? Não sei: tinha uma luz. Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente. Era terrível. Boa noite. E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada pelo sol, e era do signo da Balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se. Não compreendo. E julgas tu que eu compreendo? Quem pode compreender? Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical..., compreendes? Sim, sim. Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se. Para diante, para diante. Não se deve parar. Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros. Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade. Por pouco tempo, julgo eu. Como? Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente. Remodelemos o ensino. Cantemos aquela canção que fala da flor da tília. Bebamos um pouco. E o outro, o outro, o que viu Deus quando ia para o emprego?! Isto, imaginem, às 8 h. e 45 m. de uma tranquila manhã de março. Uma partida. Uma partida de Deus? Boa piada. Não amará Deus essas maliciosas surpresas? Um pequeno Deus folgazão?! Ele ficou doido. Começou a gritar e a fugir. Que Deus vinha atrás dele. E depois? Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar. Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra. É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem. E as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam fazendo pela vida - como elas próprias diziam. E então as condições sociais? Sim, melhoraram bastante. Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz. Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. É até mais triste que as outras. Estou tão triste. Vamos para férias, para o pequeno paraíso. Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia agarrar um copo: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. E depois, e depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora.
Herberto Helder,

9.10.04

Solilóquio sobre a 2:

Hoje não faço nada. Não faço mais nada. Durmo a tarde inteira. Talvez pegue num livro. Talvez jante. E depois comando o televisor para a dois, e fico à espera do "Grande Ecrã", que se atrasos não houver, começará lá pelas 23:20. ELOGE DE L´AMOUR é o que me espera. Jean-Luc Godard, em 2001. Depois, já é outro dia. Bebo até de manhã.

É um risco

... tudo isto é triste - tudo isto é triste - tudo isto é triste - tudo isto é triste ...

8.10.04

PROSA INSANA # 3

Uma luz amarela, pardacenta, doentia, tenta entrar por esta toca. Com o manto amarelado, chega também o pestilento odor invernal que se entranha nas paredes telúricas. Fecho tudo. Tudo. Rapidamente. Ouço o vento uivando lá em cima, na superfície do bosque, desencantado com o repentino ataque do mais feio rosto da Natureza que se enfurece sem aviso, que se alvoroça, medonha e com fome de destruição. Escondo-me no recanto mais quente do reduto. Prego pela hibernação que não chega, que não envolve, que não descansa. E já me vejo em calças pardas, enfrentando tempestades que cheiram a devastação natural na sua limpeza evolucionária que tanta e tanta vez, da injustiça, faz lei. Agarro-me ao coração e peço protecção. Entrelaço as mãos e rezo a oração. Oro e coro. E adormeço com o estrondo do trovão.


Entremos na casa de Calexico e viajemos por essa bela América nostálgica. Visitemos as variadas paisagens musicais oferecidas pela banda de Tucson, Arizona. Acompanhemos paixões, gostos e desgostos, e passemos a fronteira. Entremos nas sonoridades mexicanas. Dancemos e descansemos depois sob as estrelas que brilham, celebrando a música que vai ficando nos nossos corações...

Gift X-Change
Minas de Cobre
Mais mp3 e vídeo e...

Perigo

Quente vai este Outubro que arde com suspeitas de censura nesta Democracia que nas bocas de todos saliva, cuspida como certeza, essa certeza que vai sendo o ópio com que o povo se ilude de viver num país mui democrático. É nesta apregoada democracia que senhores fazem declarações perigosas a roçar vetustas eras do prego na língua. É nesta democracia que um Professor/comentador cessa a sua colaboração com uma estação de televisão, privada, por motivos ainda obscuros.

Pressões? O ministro dos Assuntos Parlamentares, o senhor Rui Gomes da Silva, afirma ter estranhado o silêncio da Alta Autoridade para a Comunicação Social em relação a comentários feitos pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa, na sensibilidade do ministro, classificados como de “ódio”. De ódio! E o que estranha exactamente este senhor? Não é pressão, claro que não. Tão-somente deve de achar que a Alta Autoridade deve estar mais atenta para calar certas vozes que soam mal nos ouvidos governamentais. Que isto da liberdade de expressão não foi coisa feita para apunhalar costas partidárias. A liberdade de expressão é sintoma da boa saúde democrática, muito salutar, vital, até. Mas com conta, peso e medida. E quem melhor para decidir esses altos critérios? Quem manda sem ter sido eleito. Esta é a Democracia que ninguém pediu nem quer ver por perto, mas aquela que temos – em perigo. E perigosa.

6.10.04

Feira da Ladra

Quem quer contos e textos ao preço de clique? Oscar Wilde, Charles Dickens, Gogol, Dostoievski, Tchekhov, Flaubert, Marquês de Sade, Edgar Allan Poe, Luigi Pirandello, Kafka. E mais. Muito mais. Façam o favor de seguir por aqui e aqui entrar, para desfrutar.

5.10.04

É um risco

... só gosto de ti - só gosto de ti - só gosto de ti - só gosto de ti ...

PROSA INSANA # 2

Tão poucos são os tostões que os guardo debaixo do colchão, na moda antiga dos antepassados remediados, alimentados a couves e ovos de galináceos atacados por gordos piolhos. São tão poucos os tostões que não há fila que me chame para defronte dessas máquinas todas multi-qualquer-coisa, todas vomitadoras de vil metal, expelido em papel. Também (ah, suprema quietude!) não há centro que me veja entrar nesse descomunal mundo do comercial, todo compre-tudo, ardendo eu nas altas febres de querer o supérfluo para encher a despensa da vaidade, para adquirir a camisa mil vezes vendida para outros corpos embelezar. A minha camisa, vestida hoje, é a mesma de ontem; a mesma que amanhã me irá aquecer junto à rústica lareira construída pelas mãos dos antepassados, a beber vinho feito com os pés e a dizer para o cão: Amigo deste homem, a pobreza também tem os seus encantos!

4.10.04

Bendita ponte

Não há muito tempo - se a memória não me atraiçoa e os ouvidos não desmentem a lembrança - lembro-me de ter registado a importância vital de um país produtivo, muito trabalhador, a bem de todos nós. Hoje, a ponte mata um dia de trabalho nas tocas públicas, num descanso que prolonga o fim-de-semana. Bendita benesse concedida pelo governo que mais quer produzir, mas com olho atento às vontades do povo que, não nos esqueçamos, irá ser chamado às urnas para depositar a sua vontade, marcando cruz na cor política que concidere mais apta para dirigir os rumos da nação. Há, pois, que prevenir intenções que nos soberanos votos se expressarão. Queremos nós gozar de um dia de descanso entalado entre um domingo e uma terça? O bom governo não se esquece da doce “oferta”. Está nas nossas mãos (e na nossa memória) o desejo de [não(?)] retribuir.

3.10.04


Joan Miró - Catalan Landscape

2.10.04

Por outros lados

Vida e obra do grande cineasta português António Reis (1927 – 1991).
Assim se apresenta este blogue , que se propõe reunir material acerca do realizador português. Daqui, saúda-se entusiasticamente o autor, por tão iluminada iniciativa. Espaços destes dão outra dimensão à rede, tornando-a ainda mais útil e lançando (digo eu) novas abordagens a este fenómeno do blogue, que vai permitindo àquele que deseja comunicar e/ou “publicar”, fazê-lo. Neste caso, redobramos os louvores, pela excelência da empresa a que se dedica. A visita é obrigatória.

1.10.04


Dia Mundial da Música. Hoje, neste dia primeiro de Outubro, num Outono com estranhos ares de Verão. É em português que celebramos o dia. Com gente que rouba, que rato que é rato pouco se importa com conceitos de ética, já caducos, nesta era do sample. E menos se importa quando o produto final respira qualidade e inovação, num universo próprio, circular mas expansivo, com ponta de esquizofrenia electrizante. Apaguemos os rótulos do costume. Esqueçamos influencias e as tentativas de colar a um nome, um outro, que lá nos confins do vagamente nos sugere os sons que nos chegam aos sentidos. É que uma regra que parece reger este projecto é precisamente a falta delas, evidente nas suas diversas facetas. Ironia, sentido de humor, gosto apurado no cozinhado multicultural fervido em caldo burlesco, talvez excessivo, talvez. Mas personalizado, engalanado com uma áurea surrealista, sempre bem vinda por estes lados. Para quem não conhece, aqui fica umas amostras, porque por aqui foge-se da crítica pura e dura, como faz o bom rato do gato mau. Ah!, os larápios nada escondem. São os Stealing Orchestra:

Bu! (2004)
Palpitações, Delírios e Mau Feitio ao Acordar
É Contra Mim Que Luto
O Medo Vai Ter Tudo

É Português? Não Gosto! (EP, 2001)
Mensagem da Dona Lina
O Pastor, a Droga e as Visões
For Me Formidable