31.1.05
Estás a vê-los bem? Cheira-os. Decerto que esse cheiro que mal exalam jamais sairá da tua memória olfactiva. Fareja-os: são políticos, Lindocão. Aquele ali vai cravado de facadas nas costelas adoentadas. Diz que governa, Lindocão. E, diz ele, que a gente já o conhece. Ah!, mais uma tirada infeliz, carregadinha de falta dessa coisa que nem em todos espíritos habita: bom senso. Ora, se a gente já conhece aquele ser, se a gente já o viu cometer as mais grossas asneiras, como, como vamos nós querer dar-lhe novo voto que o leve a continuar a agitar-se na incubadora que foi enterrada? Cada tiro, cada buraco no pé falso. Não bastando o infeliz cartaz com o professor Cavaco, tiveram que fazer um de gargalhada. Mas acho bem. Precisa o povo de rir, se nesta cegueira conseguir ler. Sim, porque anda por aí uma grande fraude com laivos de mega naqueles covis das sondagens que dão grandes vantagens ao Doutor Eng. da rosa. Mas julgas, Lindocão, que vais comer daquela ração com mais vitaminas, aquela bem mais cara? Julgas que aquele meio-sorriso nos vai fazer sorrir numa vida de sonho cor-de-rosa? Nem ele, nem nenhum dos outros. Com blocos esmagam paredes direitas ao centro erigidas. Com foices cortam laranjas cujo sumo servem, em bandeja de prata adornada com rosinhas catitas, aos grandes chefes do capitalismo que por aí rosnam o seu poderio avançado, sempre avançando num tsunami de Coca-Cola enquanto não aparece uma valente tempestade, que de resto já se adivinha, de "clepes". E todos hão-de ir a reboque porque todos: blocos, foices, laranjas e rosas, sob pena de não se afundarem, se vergam à forte lei do mais ditador com a boca cheia da palavra democracia, esse doce com que nos acenam para legitimamente, legalmente, democraticamente, claro está, nos foderem a vida. Sou estúpido e ando doudo, não é lindocão? Não tenho formação nem informação. Não digo coisa que bata com outra? Desde que bata, já me chega, meu fiel. Outros mais me chamarão nomes. Energúmeno. Mentecapto. Céptico. E que me digam que nada entendo, que tudo me escapa, que sou ninguém. Disso, ó cão, não quero saber, desde que, quando deres de cheiros com algum desses bichos políticos lhes rosnes e lhes mordas os calcanhares. E não vou mais longe nos conselhos porque eles, esses "pó da mesma farinha", merecendo dentada, deve de ser nossa e não de um animal que vê, sem perceber, a podre caravana passar.
Fotografia de Elliott Erwitt
28.1.05
26.1.05
Diálogos de Morte # 2
E eis que da tecla deste fraco escrevinhador salta mais um inquietante “Diálogos de Morte”. Na verdade, caríssimos leitores, é mais um episódio arrancado à mesma personagem. E sendo ainda mais verdadeiro, vos digo: faz parte de coisa minha, que mais não é do que historieta sem fim, vagarosamente tecida na ociosidade, mas - e perdoem-me a avaliação em auto -, sendo eu rato generoso, convosco partilho uma ou outra passagem que bem sobrevive sozinha, assim, sem mais nem menos, com a cara mais podre do que envergonhada. É o caso presente. Não me levem a mal.
E chega de achegas e intróitos de mau comunicador. Passemos à grande acção. Tal como acontecera na edição primeira, uma personagem falará em itálico, a outra dando voz à “normalidade”. Diverti-vos, mas - uma advertência! - certificai-vos que o vosso espírito não está eivado por dogmas, que, pelo contrário, está livre, solto, que esvoaça para lá do avassalador mundo das obrigações do atarefado dia-a-dia, tantas vezes pintado de cinzento. Que haja luz nos vossos olhos, e que eles vos deixe ver as belezas do ridículo.
Ah, já me esquecia! Um estranho ser que sai de um exame médico. Um carro que avaria. Um reboque com homem dentro que é chamado. A viagem até uma oficina. E não é preciso mais: temos diálogo:
E chega de achegas e intróitos de mau comunicador. Passemos à grande acção. Tal como acontecera na edição primeira, uma personagem falará em itálico, a outra dando voz à “normalidade”. Diverti-vos, mas - uma advertência! - certificai-vos que o vosso espírito não está eivado por dogmas, que, pelo contrário, está livre, solto, que esvoaça para lá do avassalador mundo das obrigações do atarefado dia-a-dia, tantas vezes pintado de cinzento. Que haja luz nos vossos olhos, e que eles vos deixe ver as belezas do ridículo.
Ah, já me esquecia! Um estranho ser que sai de um exame médico. Um carro que avaria. Um reboque com homem dentro que é chamado. A viagem até uma oficina. E não é preciso mais: temos diálogo:
- Então o que é que ele tem?
- Não faço ideia. Não percebo nada de máquinas; elas não querem nada comigo, eu só quero usar-me delas.
- Mas não tentou ver o que se passa?
- Deve estar com frio, ou falta-lhe o ar, ou enforcou-se com a correia, ou mijou o óleo, sei lá. De beber é que não é.
- Para onde quer que o reboque?
- Boa pergunta, meu caro senhor. Conhece alguma oficina?
- Conheço várias.
- Siga para uma qualquer.
- Uma qualquer?
- Confio nos desconhecidos.
- Faz mal, nos tempos que correm não podemos confiar em ninguém.
- Que fazia eu agora se não confiasse no senhor? Nada! Ficava a olhar para as entranhas do monte de lata a tentar reanimá-lo com a mente.
- Também é verdade!
- Preciso de confiar, apesar de você poder ser tão perigoso como o pior dos assassinos em série. Não tem cara disso, parece um honrado pai de família, e no entanto, calhando, acabou de violar três matrafonas eslovacas, arrancou-lhes as cabeças, comeu-lhes os olhos, abriu-lhes os crânios à pancada como se fossem cocos loiros e deu os cérebros aos cães famintos. E agora está aqui para levar um gajo qualquer com a sua carripana avariada. Quem lhe diz que eu não avariei o carro de propósito para lhe arrancar o coração? Ou que ainda me corre nas veias o sangue maldito do Vlad vampírico, que o levo para um descampado para empalá-lo, salvo seja.
- Grande filme!
- O Drácula?
- Esse, de eu andar por aí a violar matrafonas e do senhor me arrancar o coração. Era justo: cá se fazem, cá se pagam.
- Nem mais! Quem mata também morre. Por isso, meu caro amigo, viva. Não se preocupe com os desconhecidos. Coma eslovacas, ou vacas só, e cabras, montesas e outras maltesas de todas as raças. Viva. Viva antes que lhe nasça uma tromba de elefante na barriga.
- Essa era boa!
- Olhe para a minha boca.
- Que é isso?
- Já alguma vez imaginou ter uma nova boca a querer devorar a boquinha que Deus lhe deu?
- Não!
- Então não se admire com trombas no ventre. De mais a mais, meu senhor, ninguém conhece ninguém, na verdade. Viva, viva.
- Está bem visto! Também, não podemos fazer outra coisa, temos de viver.
- Ai, não, que não se pode! Basta querer, e ter as bolas no sítio: pum, já está, já ardo no Inferno.
- Já está preso.
- Como disse?
- O seu carro já está preso. Vamos?
- Vamos.
- Levo-o a uma oficina que fica aqui perto. Os gajos são bons.
- Não faço ideia. Não percebo nada de máquinas; elas não querem nada comigo, eu só quero usar-me delas.
- Mas não tentou ver o que se passa?
- Deve estar com frio, ou falta-lhe o ar, ou enforcou-se com a correia, ou mijou o óleo, sei lá. De beber é que não é.
- Para onde quer que o reboque?
- Boa pergunta, meu caro senhor. Conhece alguma oficina?
- Conheço várias.
- Siga para uma qualquer.
- Uma qualquer?
- Confio nos desconhecidos.
- Faz mal, nos tempos que correm não podemos confiar em ninguém.
- Que fazia eu agora se não confiasse no senhor? Nada! Ficava a olhar para as entranhas do monte de lata a tentar reanimá-lo com a mente.
- Também é verdade!
- Preciso de confiar, apesar de você poder ser tão perigoso como o pior dos assassinos em série. Não tem cara disso, parece um honrado pai de família, e no entanto, calhando, acabou de violar três matrafonas eslovacas, arrancou-lhes as cabeças, comeu-lhes os olhos, abriu-lhes os crânios à pancada como se fossem cocos loiros e deu os cérebros aos cães famintos. E agora está aqui para levar um gajo qualquer com a sua carripana avariada. Quem lhe diz que eu não avariei o carro de propósito para lhe arrancar o coração? Ou que ainda me corre nas veias o sangue maldito do Vlad vampírico, que o levo para um descampado para empalá-lo, salvo seja.
- Grande filme!
- O Drácula?
- Esse, de eu andar por aí a violar matrafonas e do senhor me arrancar o coração. Era justo: cá se fazem, cá se pagam.
- Nem mais! Quem mata também morre. Por isso, meu caro amigo, viva. Não se preocupe com os desconhecidos. Coma eslovacas, ou vacas só, e cabras, montesas e outras maltesas de todas as raças. Viva. Viva antes que lhe nasça uma tromba de elefante na barriga.
- Essa era boa!
- Olhe para a minha boca.
- Que é isso?
- Já alguma vez imaginou ter uma nova boca a querer devorar a boquinha que Deus lhe deu?
- Não!
- Então não se admire com trombas no ventre. De mais a mais, meu senhor, ninguém conhece ninguém, na verdade. Viva, viva.
- Está bem visto! Também, não podemos fazer outra coisa, temos de viver.
- Ai, não, que não se pode! Basta querer, e ter as bolas no sítio: pum, já está, já ardo no Inferno.
- Já está preso.
- Como disse?
- O seu carro já está preso. Vamos?
- Vamos.
- Levo-o a uma oficina que fica aqui perto. Os gajos são bons.
- Isso é que é preciso: ir encontrando gente boa, conhecidos ou por conhecer.
- Por acaso, não estive com eslovacas, mas estive com brasileiras.
- Ora vê, quase adivinhei! Sempre achei que tinha qualquer coisa de mago. São assim tão melosas como se apregoa aos quatro ventos?
- São diferentes.
- Diferentes como? Três mamas, receptáculo aveludado onde descansar os tomates?
- Esta falava muito.
- Ah sim! Pediu para lhe poupar a cabeça?
- O senhor é um brincalhão! O que é que faz?
- Não faço nada. Sou doente e vivo às expensas da minha mãe.
- Por acaso, não estive com eslovacas, mas estive com brasileiras.
- Ora vê, quase adivinhei! Sempre achei que tinha qualquer coisa de mago. São assim tão melosas como se apregoa aos quatro ventos?
- São diferentes.
- Diferentes como? Três mamas, receptáculo aveludado onde descansar os tomates?
- Esta falava muito.
- Ah sim! Pediu para lhe poupar a cabeça?
- O senhor é um brincalhão! O que é que faz?
- Não faço nada. Sou doente e vivo às expensas da minha mãe.
- Vive de quê?
- Não grite, caramba!
- É do barulho do carro, não o ouvi.
- Vivo dos restos da fortuna da minha mãezinha.
- Tem sorte.
- É o que não me falta, de facto. Fiquei doente, fui radiografar a boca do diabo, saio do exame e a carroça recusa-se a andar. É preciso ter sorte!
- Teve um azar! Acontece a toda a gente.
- Nunca vem só, não. O bom povo é que tem razão: “quando se tem azar até na cama se parte as pernas.”
- Mas ainda tem mãe. Eu já não tenho, nem mãe nem pai.
- Estamos quase iguais.
- Então?
- Pai, nunca lhe vi nem carnes nem ossos. Mãe é aquela velha desgrenhada que fala com papagaios poliglotas na varanda do asilo. É a mesma coisa que ter coisa nenhuma.
- Mas sempre a visita e fala com ela!
- Sim, sou mais uma ave na sua vida a abanar a cabeça dizendo sim sim aos seus fados chorosos, dizendo, Não pense nisso, não pense nesses monstros. Eles não lhe comem o cérebro como julga, eles não a atam à cama. Os que a amarram são outros, são os de bata branca, aqueles anjos que lhe tratam da saúde, ou melhor, das saúdes, as do corpo e as da alma.
- Passou-se?! A minha sogra também não tem os parafusos todos.
- A minha mãe tem os parafusos todos, todos com as roscas moídas.
- Teve azar!
- Teve azar, diz o senhor! Para si é tudo fruto da sorte e do azar. O azar, meu senhor, é um bicho-de-sete-cabeças, quando aparece parte-nos as pernas.
- Essa, nunca ouvi!
- Nem eu!
- Como é que é?
- Deixe lá, é melhor não saber.
- Também não há tempo: está entregue.
- Obrigado, Senhor, por calares esta boca do azar!
- Como?
- Come, come, e bebe e fode antes de perderes os parafusos…
- Não grite, caramba!
- É do barulho do carro, não o ouvi.
- Vivo dos restos da fortuna da minha mãezinha.
- Tem sorte.
- É o que não me falta, de facto. Fiquei doente, fui radiografar a boca do diabo, saio do exame e a carroça recusa-se a andar. É preciso ter sorte!
- Teve um azar! Acontece a toda a gente.
- Nunca vem só, não. O bom povo é que tem razão: “quando se tem azar até na cama se parte as pernas.”
- Mas ainda tem mãe. Eu já não tenho, nem mãe nem pai.
- Estamos quase iguais.
- Então?
- Pai, nunca lhe vi nem carnes nem ossos. Mãe é aquela velha desgrenhada que fala com papagaios poliglotas na varanda do asilo. É a mesma coisa que ter coisa nenhuma.
- Mas sempre a visita e fala com ela!
- Sim, sou mais uma ave na sua vida a abanar a cabeça dizendo sim sim aos seus fados chorosos, dizendo, Não pense nisso, não pense nesses monstros. Eles não lhe comem o cérebro como julga, eles não a atam à cama. Os que a amarram são outros, são os de bata branca, aqueles anjos que lhe tratam da saúde, ou melhor, das saúdes, as do corpo e as da alma.
- Passou-se?! A minha sogra também não tem os parafusos todos.
- A minha mãe tem os parafusos todos, todos com as roscas moídas.
- Teve azar!
- Teve azar, diz o senhor! Para si é tudo fruto da sorte e do azar. O azar, meu senhor, é um bicho-de-sete-cabeças, quando aparece parte-nos as pernas.
- Essa, nunca ouvi!
- Nem eu!
- Como é que é?
- Deixe lá, é melhor não saber.
- Também não há tempo: está entregue.
- Obrigado, Senhor, por calares esta boca do azar!
- Como?
- Come, come, e bebe e fode antes de perderes os parafusos…
- Que disse?
- Obrigado, Senhor!
- Obrigado, Senhor!
24.1.05
PROSA INSANA # 7
Para aqui regresso, belo tugúrio, lavando as vistas, fugindo da poluição visual que invade as ruas com os cartazes da gente política que com muita genica e alguns ataques mútuos pedincham o voto do bom povo que os leve ao poleiro para, quando lá estiverem cacarejando quais galos, cagarem nas promessas com que alimentaram as esperanças de novos e graúdos, de velhos e doentes, de donas com casa e de casas com donas, dos empregados e dos por empregar. Todos eles (todos nós) empregando mal o tempo que perdem (que perdemos) em escutá-los. Dos cartazes, ó toca, te digo: são hilariantes. Contra ventos e marés, querem eles tomar novo rumo, prometendo a viragem na voragem dos tempos em que a comunicação é rainha na desinformação. Parece confuso, quatro paredes com abóbada? É um exagero, terra? Exagero são as armas com que se atacam. E mais depressa nos chega ao cérebro a notícia da intriga e da polémica do que as ideias e as medidas estudadas para nos fazer navegar por esse tal rumo que todos, de uma maneira ou de outra, falam, e que, bem vistas as coisas, nada dizem. É como o outro que tanto chateia com a sua pequena rábula do “falam, falam”, subitamente engrandecida, elevada à qualidade de genial e levada em ombros pelo povo ávido de uma laracha um pouco mais sumarenta e até, imagine-se ao que se chegou!, posta nos píncaros por uns quantos intelectuais mui amigos da praça, muito convencidos que o grande humor está de volta depois da queda do outrora mestre Herman, agora caido na desgraça de ser... louro. E como ele caiu, acha-se que finalmente arribou a grande andorinha nesta falsa Primavera. Já podemos rir: há inteligência! "Falam, falam. Falam, falam." E a gente precisa de ver mais. Por isso, pequena segurança, aqui me vou anichar, protegido da grande vaga de frio que para aí vem, e observar com olho de rato a porcaria, e a beleza também, que este desgovernado mundo nos tem oferecido com tanta bonomia.
É, meus amigos, um regresso. À toca.
12.1.05
9.1.05
Por outros lados
Do Árabe albixara, notícia boa:
ALVÍSSARAS - s.f.pl., prémio que se dá a ente mitológico que "por súplica e rogo de várias famílias" nos brinda com "Dicionário Shelltox Concise", esse precioso objecto, achado, aqui.
ALVÍSSARAS - s.f.pl., prémio que se dá a ente mitológico que "por súplica e rogo de várias famílias" nos brinda com "Dicionário Shelltox Concise", esse precioso objecto, achado, aqui.
Ide. Já!
7.1.05
Só se o homem mandar V
Vamos, Lindocão? Vamos entrar na floresta e embrenharmo-nos nas veredas abertas pelos felizes viandantes amigos da Mãe Natureza. Vou eu matar o meu tempo, vais tu ganhar o teu. Vai a saúde de ambos se alimentar das árvores. Da minha parte arejar estes pulmões manchados pelo veneno do vício. Vou eu, andando, ver-te saltitar endoidecido, furiosamente correndo para agarrar essa inaudita felicidade canina sem saberes que ela, de um segundo para o outro, te pode fugir. Ver-te correr pelos riachos. Perseguires restolhares inaudíveis ao meu ouvido de tísico, mas humano, demasiado humano para me aperceber de certos tons que da pequena subtileza faz vida intensa. E ficar eu feliz também, por te ver assim. Assim, correndo na e pela vida. É curta, não é? E sorte tens tu em desconhecer essa mortal certeza do fim. Que ele esteja longe! Muito mais longe do que o caminho que temos de percorrer pela civilização até chegar ao teu paraíso de cheiros e divertimentos. E o bom dia não acaba aqui. Tenho mais uma surpresa para ti. Na vinda, ou à vinda (como preferes?), passamos por aquela vivenda branca e rosa. Sabes qual é, pois então. É aquela da tua amiga que tantas brincadeiras te ladra, pedindo com latidos as tuas leves mordeduras apaixonadas. Bem os vejo, eu. Aqueles jogos aparentemente pueris de cachorros sem apetites com fins. Mas, sabes, até se podem enlaçar. É verdade. Esterilizada! Foi a dona que a secou. Desculpa a conversa... Mas fica descansado. Eu não te faço isso. Dizem que ficavas mais manso. Quero-te lá manso, eu! Diverte-te, canino. E olha que ela é engraçada. A atirar assim para o finório. Demais, talvez, na minha opinião que nada vale nem chamada é pelo teu sentir irracional das coisas. Tem um ar emproado, acho eu, mas, se vocês se querem, não quero eu ser o carrasco desse vosso amor. Não é assim, Lindocão? É pois! Vamos lá correr para depois, só depois, a vermos.
Elliott Erwitt - New York, 1999
6.1.05
5.1.05
Já Roda
Discorreu aquela cabecinha mandar obrar grande cartaz, com a sua figura entre figuras que mal ou bem - mais mal que bem - por aqui governaram de laranja vestidos. Mas, pasmo!, estala a polémica: nem todos querem dar nas vistas, e muito menos serem vistos naquele quadro, ao lado de más figuras, para não aludir ao Sr. Cervantes e escrevinhar “triste figura”. Mandava o bom senso comunicar às pessoas retratadas uma autorização prévia para tão vistoso fim. Mas, assim parece, ao professor (logo a quem!) nada foi pedido. E não quer Cavaco certas misturas porque, ainda por cima, é homem de activa carreira universitária. Desculpa airosa, muito doce e pouco picante para aquilo que do ex-primeiro-ministro já lemos e ouvimos em relação a certa má malta que da política come pão que o povo amassou (e amassa, grande parte dele – o povo, provando do pão a dura côdea da pobreza).
E com aquela desculpa, fez o professor ouvir a sua incómoda voz, mostrando que não quer dar nas vistas, demarcando-se do pobre Santana, tão enjeitado pela família citrina, amarga, muito amarga, para com o precoce lutador que caminha cheio de facadas nas, ainda assim, largas costas. E por nisso falar… Também há por aí episódios de faca e alguidar, de novas traições, de novas confusões, de novos bate-boca entre os que querem saltar para o poder, essa chucha que nem todos os bebés sabem lamber. Confusões que todos varrem: da esquerda à direita, é um vê se te avias. Com tudo isto – e muito mais se espera, já cheira a campanha. Má campanha. E que não se leia nestas palavras gáudio e mesquinhez do género “vamos lá ver se tudo isto corre mal para poder escarnecer”. Longe disso! É triste e incomodado fico ao ver este continuado espectáculo, tanta insensatez, tanta ganância, tanta estupidez, tanto nada. E mesmo que por aqui se brinque, como em tantas outras ocasiões já aconteceu, é para não cair noutro ponto fraco luso: a tristeza do fado acomodado.
4.1.05
Diálogos de Morte
No alvor deste ano que aos poucos arriba, abre-se aqui uma nova rubrica que, talvez, não passe desta edição: única e sem exemplo. Chamo-lhe "diálogos de morte", fino nome que muito pensamento moeu durante as bêbedas insónias paridas pela passagem de ano. Que não se espere ser (sempre) a morte o assunto central. Que não se espere reflexões existencialistas de génio mui pensador. O incrível nome surge do apurado gosto pelo ridículo, numa manobra de perigosa diversão alienada que, com muito gosto, convosco partilho.
Neste número primeiro, o diálogo desenvolve-se num centro de saúde, entre o paciente e a senhora responsável pelo atendimento. Apresenta-se assim: em itálico fala a senhora, em “normal” fala o cavalheiro. Ei-los na desconcertante acção:
- Que estranho! Diz aqui que o senhor está… está morto!
- Desculpe, mas não acredito. Não posso crer que o Paraíso tenha estas cores, que consinta estas vestimentas, que haja caras como a da senhora e que no ar circule tanto cheiro a doença. De mais a mais, não vim de nuvem nem sobrevoei rios de mel. Nada disto respira a idílico. Se estou moribundo, encontro-me no Inferno, ou no purgatório, à espera da senha três mil para entrar na sala da juíza.
- Pois, se o senhor está aqui… M. A., não é?
- É? Foi? Decida!
- Deve ser um erro. O senhor está aqui, não pode estar morto!
- A sua perspicácia desarma o meu fraco entendimento, minha senhora. Calculo que esteja a rebentar de razão!
- E agora?
- E agora, morto ou vivo, exangue ou a estoirar de pletora, quero falar com a doutora! Talvez ela consiga descobrir o meu estado, talvez consiga agarrar a minha pulsação e decidir se o meu coração bate ou se acabou de parar como os seus dados informáticos pretendem anunciar.
- Mas a questão não é essa!
- A questão é um erro, minha senhora.
- Porque é que aqui está morto?
Neste número primeiro, o diálogo desenvolve-se num centro de saúde, entre o paciente e a senhora responsável pelo atendimento. Apresenta-se assim: em itálico fala a senhora, em “normal” fala o cavalheiro. Ei-los na desconcertante acção:
- Que estranho! Diz aqui que o senhor está… está morto!
- Desculpe, mas não acredito. Não posso crer que o Paraíso tenha estas cores, que consinta estas vestimentas, que haja caras como a da senhora e que no ar circule tanto cheiro a doença. De mais a mais, não vim de nuvem nem sobrevoei rios de mel. Nada disto respira a idílico. Se estou moribundo, encontro-me no Inferno, ou no purgatório, à espera da senha três mil para entrar na sala da juíza.
- Pois, se o senhor está aqui… M. A., não é?
- É? Foi? Decida!
- Deve ser um erro. O senhor está aqui, não pode estar morto!
- A sua perspicácia desarma o meu fraco entendimento, minha senhora. Calculo que esteja a rebentar de razão!
- E agora?
- E agora, morto ou vivo, exangue ou a estoirar de pletora, quero falar com a doutora! Talvez ela consiga descobrir o meu estado, talvez consiga agarrar a minha pulsação e decidir se o meu coração bate ou se acabou de parar como os seus dados informáticos pretendem anunciar.
- Mas a questão não é essa!
- A questão é um erro, minha senhora.
- Porque é que aqui está morto?
- Se calhar até estou.
- Isto confunde-me! Se está aqui em como o Sr. está morto por alguma razão é!
- Pela mesma razão que estaria aí que estou vivo. É uma informação. Alguém achou que eu devia de estar morto. Está no seu direito; se quis ver-me morto – matou-me.
- Mas não é assim! Não se brica com a vida!
- Então ressuscite-me e acabe com esta questiúncula de vida e de morte. Pareço vivo, não pareço? Respiro, falo, mexo membros. Que mais provas quer?
- Se calhar há outro Sr. com o seu nome. Devia ver isso.
- Fique descansada. Vou indagar. Vou correr mundo à procura desse patife que morreu com o mesmo nome que eu. É uma questão de honra! Não se mata assim um outro, assim desta maneira cobarde só porque tem o mesmo nome. Que quer ele? Enlouquecer-me? Quem se julga para me matar com ele? Estou vivo, patife! Vou encontrá-lo, minha senhora, e, se for preciso, obrigo os ossos a falarem: Restitui a verdade perante todos, filho da puta. Fala, morto. Diz a esta senhora que te finaste, que perdeste o pio na depressão do Cabo da Boa Esperança; eu ainda ando por aqui de carnes vivas! Venho a um posto de saúde para dela tratar e descubro-me falecido. Tudo por tua causa, M. morto!
- Não se exalte!
- Não estou exaltado, estou a descansá-la, a prometer-lhe que de tudo farei para deslindar este caso insólito. Vou procurar o morto do seu computador, trazê-lo aqui para a senhora comparar, para ver que este outro M. A. que aqui se apresenta em frente aos seus olhinhos está vivo e quer entrar no gabinete da médica pelas próprias perninhas, sem dar qualquer indício que leve alguém a julgá-lo sem vida.
- Eu vou ver o que se passa, Sr. M.
- Oh!, não se dê ao incómodo. Imagino a trabalheira que deve dar chafurdar nesta confusão do morto-vivo que se junta a essa outra confusão que dorme aí ao seu lado, a essa miríade de papéis que não consegue escoar nas muitas horas que passa aqui a labutar, a dar de si o melhor que pouco ou muito é aquilo que a obrigam a fazer ou deixar para a próxima eternidade, não vá dar ares de super-mulher aos olhos de terceiros mal-intencionados. Imagino os milhares de impressos necessários para descobrir se respiro ou se alimento minhocas, se ando aqui ou se por aqui já não tenho voz. Isto é coisa do Estado, minha senhora?
- Como assim?
- A informação do meu falecimento percorre todos os computadores da nação? Estou morto aqui, e nas finanças, e nos tribunais?...
- Não sei, julgo que sim!
- M. A. está morto, minha senhora, e esse morto sou eu! E agora com a sua licença, vou me sentar, mortinho pela chamada da doutora. Bom ano para si e para os seus, minha senhora.
- Pela mesma razão que estaria aí que estou vivo. É uma informação. Alguém achou que eu devia de estar morto. Está no seu direito; se quis ver-me morto – matou-me.
- Mas não é assim! Não se brica com a vida!
- Então ressuscite-me e acabe com esta questiúncula de vida e de morte. Pareço vivo, não pareço? Respiro, falo, mexo membros. Que mais provas quer?
- Se calhar há outro Sr. com o seu nome. Devia ver isso.
- Fique descansada. Vou indagar. Vou correr mundo à procura desse patife que morreu com o mesmo nome que eu. É uma questão de honra! Não se mata assim um outro, assim desta maneira cobarde só porque tem o mesmo nome. Que quer ele? Enlouquecer-me? Quem se julga para me matar com ele? Estou vivo, patife! Vou encontrá-lo, minha senhora, e, se for preciso, obrigo os ossos a falarem: Restitui a verdade perante todos, filho da puta. Fala, morto. Diz a esta senhora que te finaste, que perdeste o pio na depressão do Cabo da Boa Esperança; eu ainda ando por aqui de carnes vivas! Venho a um posto de saúde para dela tratar e descubro-me falecido. Tudo por tua causa, M. morto!
- Não se exalte!
- Não estou exaltado, estou a descansá-la, a prometer-lhe que de tudo farei para deslindar este caso insólito. Vou procurar o morto do seu computador, trazê-lo aqui para a senhora comparar, para ver que este outro M. A. que aqui se apresenta em frente aos seus olhinhos está vivo e quer entrar no gabinete da médica pelas próprias perninhas, sem dar qualquer indício que leve alguém a julgá-lo sem vida.
- Eu vou ver o que se passa, Sr. M.
- Oh!, não se dê ao incómodo. Imagino a trabalheira que deve dar chafurdar nesta confusão do morto-vivo que se junta a essa outra confusão que dorme aí ao seu lado, a essa miríade de papéis que não consegue escoar nas muitas horas que passa aqui a labutar, a dar de si o melhor que pouco ou muito é aquilo que a obrigam a fazer ou deixar para a próxima eternidade, não vá dar ares de super-mulher aos olhos de terceiros mal-intencionados. Imagino os milhares de impressos necessários para descobrir se respiro ou se alimento minhocas, se ando aqui ou se por aqui já não tenho voz. Isto é coisa do Estado, minha senhora?
- Como assim?
- A informação do meu falecimento percorre todos os computadores da nação? Estou morto aqui, e nas finanças, e nos tribunais?...
- Não sei, julgo que sim!
- M. A. está morto, minha senhora, e esse morto sou eu! E agora com a sua licença, vou me sentar, mortinho pela chamada da doutora. Bom ano para si e para os seus, minha senhora.