29.4.05

Críticas "Indies"

Sempre que por aqui se fala de Cinema é, digo eu, de uma forma leve, aflorando alguns aspectos do filme que decido trazer para esta página, quase sempre com um olhar mais apaixonado do que crítico. E isto sou eu, que em hora de devaneio decidi tirar um curso da especialidade. Já nessa altura se falava da crítica, sobretudo da pouca formação que alguns opinadores de serviço claramente evidenciavam. Munidos de uns quantos termos técnicos (plano, sequência, narrativa, etc.) ao alcance de qualquer ser minimamente informado, lá iam fazendo o seu trabalhinho de avaliar uma obra por inteiro. Alguns deles, os melhores segundo se dizia, tinham da História do Cinema um razoável conhecimento, servindo-se dele, do conhecimento dos compêndios, como ferramenta indispensável, que sempre safa, sobretudo se se vasculham exemplos passados e técnicas para melhor se perceber este presente. Quem nunca leu qualquer coisa como isto: “já no ano tal o fulano não-sei-quantos nos deu a brilhante…”? Ou “ao melhor estilo de…”?
E depois, de alguma crítica que achavam menos especializada, diziam alguns doutos: aquilo é ver muita coisa. É ler muita coisa. É gostar ou não. É respeitar ou não. É ter sensibilidade ou não. É sentir-se encantado ou desencantado. É gostar do estilo americano ou do estilo europeu. É ir na moda ou dela fugir…
Enfim, uma arte mais de informação do que de formação, e de gosto, claro está, porque no gosto está tudo – afinal não passa de uma opinião: nunca nos esqueçamos!…
Hoje em dia, confesso, poucas críticas de cinema leio. Mas leio jornais e até os consulto na Internet. E de vez em quando lá me deparo com algumas críticas de alguém que, julgo, é novo comentador (também) cinematográfico. Terá méritos, evidentemente, até porque parece ser senhor de muito saber e instrução. Um desses emergentes casos de polivalência que se vão tornando cada vez mais vulgares. E acho bem: é preciso saber um pouco de tudo neste mundo tão competitivo. E eles lá surgem. São poetas-comentadores-de-todas-as-artes-e-políticas que vertem a sua sapiência em jornais e televisões com a leveza de quem tudo sabe, de raspão ou no âmago da questão. Se ficamos nós, público apreciador de cinema, a perder, a ganhar ou na mesma com as opiniões destes novos críticos? Bom, eu, que não sou crítico de profissão (Deus me livre!), muito menos crítico de críticos, deixo à vossa consideração. Cada um que pense por si. É ler:

"Nesta segunda edição do consolidado IndieLisboa não tenho sido tão assíduo como no primeiro ano. O ideal nestes festivais é assistir a uma maratona de celulóide, nem que seja preciso transferir por uma semana o endereço postal. Não tenho conseguido isso mas, ainda assim, passei algumas vezes pelo King e pelo Fórum Lisboa." (…)

28.4.05

Mais Malkmus

"Us", LP "Pig Lib"
"The Hook";
"Jenny & The Ess-Dog", LP "Stephen Malkmus"

Matador Records
Stephen Malkmus

Stephen Malkmus - Baby C'mon
LP "Face The Truth"

27.4.05


Francis Picabia - Cyclope (1924 - 26)

26.4.05

Diálogos de Morte # 8

- Então o que o traz por cá?
- É um alto, senhora doutora, que se me nasceu aqui no céu-da-boca e se avoluma de dia para dia. Nasceu carrapeta e agora já é bola. Por este caminho transformar-se-á em campainha, a segunda, logo aqui tão perto dos dentes, senhora doutora, que daqui a pouco nem comer posso. Não que coma muito: sou pessoa de pouco alimento. De mais a mais com a crise que grassa por aí…
- Deixe-me ver.
- Com certeza. Não vim cá por outro motivo.
- De facto, tem aí qualquer coisa.
- Qualquer coisa, senhora doutora? Não tem nome?
- Há-de ter, com certeza, mas ainda não sei.
- Quem irá saber?
- Lembra-se se se feriu a comer?
- Que desse conta, não senhor, senhora.
- Nem outra coisa qualquer que tivesse levado à boca?
- Que tivesse levado à boca? Olé! Tudo o que nesta boca entra é para sair depois! Nada de confusões! E não, que me lembre não levei nada à boca susceptível de provocar esta intumescência. Já tem nome para ela?
- Não tem cor para infecção nem tamanho para quisto, para além de que não é vulgar aparecer um quisto nesse sítio.
- Não é vulgar!?...
- Não, não é.
- E então?
- E então vamos aguardar o desenvolvimento.
- Sugere que a bola se vai desenvolver?
- Devo dizer-lhe que, de facto, tem todos os contornos de se estar a desenvolver qualquer coisa semelhante à tal campainha de que falou.
- Uma segunda campainha!? Os meus piores receios, senhora doutora. Acha que… Vou tornar-me numa aberração de feira, um caso tão invulgar que só a lendária ficção da "Garganta Funda" me supera. Meu Deus, parece que cai numa história do Gogol. Antes perdesse o nariz! Já me vejo rodeado por uma junta médica com profissionais dos quatro cantos do mundo com os olhos arregalados postos no céu da minha boca, ou ela própria, a bocarra escancarada, a abrir os noticiários das televisões; programas especiais para mostrar a monstruosa realidade.
- Não entre em histerias. É só uma suposição.
- Uma suposição com uma imagem aterradora: ter uma campainha a badalar entre os dentes. Acha pouco, com certeza.
- Acho que devemos aguardar o desenvolvimento. Entretanto, vai fazer um tratamento.
- Faça o favor de me dar qualquer coisa para travar o cantar desta coisa, senhora doutora.
- Vai tomar isto e volta daqui a oito dias.
- Se poder falar, senhora doutora, virei, não duvide. E mesmo que as palavras me faltem, pode ter a certeza que gestos não me faltarão para comunicar a minha desgraça.

Prosa Insana # 11

Examinando todos os teus recantos, toca, deparo-me com o teu vazio, assim, sem víveres, sem uma única semente dentro; e eu, no teu seio encolhido, sem governo, com uma aguadilha a querer assomar ao olhito triste. Pois é nesta altura que te digo: tenho tecto. E estou vivo. E então, toca, parto de novo por aí, combalido mas ainda morto por viver; perdido por me perder, mas com uma grande vontade: achar o que roer; lutar ainda por te manter, mantendo-me eu, com ganas de um dia poder sussurrar: desafogo, que, fogo!, há-de vir, e se nesta tarde não vier, que se foda!, que há-de a noite trazer presa com pressa de morrer!

24.4.05

"Tabacaria"

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos

Daqui: http://www.instituto-camoes.pt/escritores/pessoa.htm

23.4.05

De 000, para 001

Está você, caro Dodo, coberto de razão. De facto, nada mais escorregadio do que nos metermos para aí, opinando sobre este e aquele, que até parece que uma raivosa inveja nos corrói a mente, nesta vida nem sempre justa. No entanto, por aqui, pouco crédito se dá a esse tipo de especulações. Mesmo pensando que a blogosfera não é um local de liberdade, uma coisa é certa: (ainda) somos todos livres de pensar e de dizer o que nos apetece – valha-nos o bom senso (e o humor, porque não?) São os outros igualmente livres de pensarem e interpretarem o que bem entenderem. E se mal me julgarem, amigo Dodo, isso, pouco me afecta, sinceramente. Ando aqui por prazer. Prazer de escrever, ainda que nem sempre bem, como tantas e tantas vezes acho. E nada procuro, a não ser divertir-me, partilhar, e chatear um bocadito, porque não? É por intimamente saber disso; por ser distraído, sim; por pouco navegar pela blogosfera (há uma meia dúzia de blogues que frequento assiduamente e pouco mais); por tudo isto, enfim, é que, quando tropeço em certas coisas, de quando em vez, me dá para escrever. Talvez o tom seja ambíguo – sou assim, escrevo assim e não me apetece polir nem opinião nem estilo, para chegar mais longe ou a mais pessoas. E estou completamente livre, até porque não conheço nenhum blogger pessoalmente. Não me interessa promoção. E também não fico irritado por não saber quem são os tais caçadores de talentos, não lhes conhecer rostos e gostos, até porque acho que é (quase) tudo uma chusma que de tudo procura, menos o suposto talento, palavra que, de resto, também é, por assim dizer, escorregadia. Mas uma coisa lhe digo: soubesse eu de um livro seu; ou do Dragão; ou da Inês, do Azimutes, ou da M., do Azul Cobalto (só para mencionar os poucos que conheço – acredito que muitos mais existem, com muitíssimo valor) e saltava num berreiro de partir as cordas vocais. O que me lixa, meu caro, não é ver gente a safar-se. Que hajam muitos livros, muitos comentadores ou cronistas. É bom sinal! Mas por que raio calha sempre a uns e nunca a outros? (Se calhar esses "outros" nem querem…) E porquê quase sempre nesta lógica comercial, de supermercado, baseada na lógica dos contadores de visitas? É o mercado, pois sim. São as influências, pois sim. E lá por isso desatamos todos a dar os parabéns a todos os gatos-pingados (como os odeio – coisas de rato!) que editam livros menos bons, alguns ainda por cima num Português duvidoso e insosso, como muito bem diz?
Tudo é legítimo, sim senhor, até uma indignação de vez em quando de um anónimo que alegremente vive na pacatez de uma terriola deste país e que num certo dia, pouco conhecendo o que era esta coisa da blogosfera, lhe deu para nela entrar, com a cabeça limpa e olhitos ingénuos de quem vê o mundo de longe, mas atento, nem sempre certo, nem sempre esclarecido, mas que tenta, sempre, saber mais, conhecer mais, pensar mais. E, finalizando (e só para que se esclareça, fugindo um pouco, é certo, ao propósito primeiro desta resposta): se ouso responder a alguns bloggers, com eles comunicando, quase se como os conhecesse, é porque muito os respeito, e ao longo dos meses se foi estabelecendo uma estranha relação, que da minha parte quase a sinto de amizade, por genuíno gáudio de ler gente que pensa e que tão bem escreve.
Bem sei, bem sei: esta merda quase resvala para a lamechice, barata e inconsequente. Estou-me nas tintas! Enquanto aqui andar (se calhar está por pouco), hei-de ser sempre assim – verdadeiro para comigo. Leia (leiam) como quiserem. Pareço arrogante? Pareço imodesto? Pareço esperto? Pareço estúpido? Pareço cantar "o fado do coitadinho"? E se calhar sou atrasado, mesquinho, invejoso?… Ora, que importa isso!? Tenha eu saúde, que a minha vida não é um blogue, e de opiniões e ilações está esta merda cheia!
Um sinceríssimo abraço, Dodo.

P.S. – No início pensei em enviar esta resposta (que é de certa maneira pessoal) para o seu sistema de comentários. Mas, depois, resolvi postá-la aqui mesmo. Poucos aqui vêm, e quem vier, que venha por bem!

21.4.05

A Invenção

Pelo Ma-Schamba, soube de uns conceitos e testes que por aí se andam a fazer, com o intuito de tornar os conteúdos (ou certos conteúdos) publicados nos blogues, pagos. É o "American Dream". Lá pelas américas, segundo consta, já muitos vivem exclusivamente desta coisa de blogar. Por cá, tirando uns livrecos que vão saindo das geniais páginas de certas influências, ainda vivemos, atrasadinhos, alheios ao progresso, pensando que ter um blogue é coisa de prazer, de partilha, de desabafo, etc., etc.. Pois não é. Eu cá, nestes tempos de vacas esqueléticas, já me vou organizando, fazendo um preçário, na minha consciência justo e honesto, pelos diversos posts.
Vamos cá ver:
1 - Se me der para opinar seriamente, cobro 2 euros.
2 – Se me der para opinar ironicamente, 2 euros, mais 50 cêntimos, pelo desgaste.
3 – Por cada quadro que descaradamente roubo por aí, e sendo eu, ainda assim honesto o suficiente, pois coloco sempre o link para a fonte original ou nomeio o autor, irei apenas cobrar 50 cêntimos (uma pechincha! – não encontrarão mais barato).
4 – Tendo este blogue algumas rubricas que a espaços aqui aparecem, tenho, digo eu, uma vantagem: é que são coisas totalmente discorridas pela minha cabecinha, originalíssimas!, logo coisa a cobrar um justo valor, pelo esforço e pelo génio: 5 euros.
5 – As baboseiras avulsas, essas, e por enquanto, são de graça, para chamar a clientela.
E isto sou eu, que vou ganhar a vidinha desta maneira, com preços sempre baixos, porque é frase que fica e porque não passo de um modestíssimo anónimo. Imagino as fortunas que por aí vão nascer! Imaginemos um Murcon, por exemplo, caso opte por esta extraordinária invenção. A avaliar pelo número de comentários, aquele consultório vai tornar-se numa mina inesgotável. Se o senhor doutor vê a sua caixa explodir de comentários por dizer-se benfiquista, imagine-se quando disser (se é que ainda não desvendou) a sua cor política, o seu prato favorito, que exótico animal teria em casa, etc. e tal. Quem vai querer perder aqueles conteúdos? Mesmo pagando, que há coisas (ou pessoas) que, se de valor, vale bem a pena apostar. Depois, quem sabe?, uma empresa, com títulos, acções e essas coisas…
Portanto, amigos, estejam atentos: a porta do futuro só se abre para os atentos. Tenham olho, mesmo que não queiram reinar neste mundo de cegos videntes. Cegos porquê? Ora, de tanta ganância, ego insuflado e esperteza, que até pode ser saloia, mas há que a rendibilizar.

20.4.05

Diálogos de Morte # 7

- O senhor desculpe, mas eu conheço-o de algum lado.
- Deveras que abismo! Olhando para o seu figurino, e assim de repente, falta-me memória para reconhecê-lo. Mas posso saber quem me conhece?
- O meu nome é M..
- Que curioso! A minha graça também é M., MA.
- M.A.? Então é isso. É mesmo você. Andámos juntos na escola.
- Na escola, diz o senhor. Que escola?
- Na escola primária.
- Então é natural que não esteja a vê-lo, salvo seja! Na minha memória entrei directamente para a secundária.
- É você, é. Eu lembro-me de si. Se calhar pela coincidência de termos o mesmo nome. Você era aquele que arrancava as torneiras dos lavatórios.
- Deveras? Não estou em mim, Senhor. De facto é capaz de ter alguma razão: sempre tive uma tara pela limpeza.
- Está bom?
- Só estou.
- Bolas, que acaso. Qual foi o seu percurso? O que faz?
- Sou doente.
- Isso é que é pior.
- Não se compadeça. Creio que as portas da eternidade ainda permanecerão fechadas por mais uns tempos.
- E profissionalmente?
- Deixe-me ver… profissional – mente… Sou ilusionista.
- Ilusionista?
- Crio ilusões. É um mundo de arrepiar. E o senhor, já na primária pensava em engravatar-se na madureza da idade?
- Como disse?
- Em tom cordato, disse: Então e o senhor, que ganha-pão exerce? Seria de uma indelicadeza sem nome não retribuir a sua inquietante questão. E pela gravata vejo que seguiu alta escola! É dos doutores?
- Sou advogado.
- Diabo! Um advogado? E aspira política?
- Não estou a perceber.
- Não estou a explicar. Desejo perguntar se aspira a uma carreira política.
- Também estou filiado num partido, sim.
- Abismo!
- Abismo?
- Estou deveras abismado! Quer dizer que na vida adulta continuamos colegas, salvo seja!
- Então?
- Então: Profissional – mente: político. Profissional - mente: ilusionista. Ambos criamos ilusões, ambos alimentando e alimentados pelo povo. E é um percurso, sim senhor, camarada. É camarada?
- Como?
- Que lado da política abraça vossa excelência? Atira-se para a direita ou para a esquerda?
- A minha ideologia é de direita.
- É político dextro, o camarada. Não o ofendo, não?
- Ofender-me?
- Tratando-o por camarada.
- Está no seu direito.
- Ah!, a patranha da Democracia! Vejo que a excelência sabe a cartilha. E com a memória que aparenta ter, decerto não lambeu o mesmo ano segunda vez. Mas diga lá da sua justiça. Gosta dele?
- De quem?
- Do povo, camarada político dextro. Se gosta do povo: com ele quer fazer vida.
- Não é com ele, é por ele.
- Desculpe esta ligeira confusão. Como diz o bom povo: a Língua Portuguesa sofre de traição.
- Não é bem isso que se diz.
- Neste encantador país, caro colega político, diz-se de tudo, e não me doa a mim a cabeça sempre que ouço por aí "coisas que não são bem assim". Mas diga lá coisas certas das suas profissões, que escalda o meu ouvido, atentíssimo e ansioso por o ouvir. Afinal de contas, se julgo bem, é raríssimo um político tropeçar num cidadão comum fora do arraial eleitoral, apertar-lhe a mão e, dos cinco dedos, escolher dois dedos para a conversa. E sinto-me um privilegiado, em êxtase! Por nada quero perder este inusitado encontro.
- Gosto de ajudar o próximo! Servir a pátria! E acho que hoje em dia, infelizmente, não se dá a devida importância ao nosso labor, à nossa função na sociedade. Confunde-se tudo. E também acho que todos deviam interessar-se por política. Não se interessa?
- Então não me interesso!?... Ora essa! Mas digo-lhe uma coisa: faço um esforço hercúleo para ver o fundo ao tacho.
- Está a desconversar?
- Ora essa! Apimento o nosso saboroso diálogo com uma pitada de sinceridade, excelência! E de mais a mais gosto de um tachinho, cheio e de boa cozedura.
- Está a desconversar. Adeus.
- A Deus, a Deus, ó político. E lembre-se (espere aí, demonstre mais fibra, homem!) Então pica-se com a fina agulha por tão pequena palha? Agarrem-no, povo! Agarrem-no que é político "escorregadio"!

No DN: "Do 'truca-truca' ao Referendo"

Quando se recordam os debates sobre a despenalização do aborto, há um nome e um verso que logo assalta a memória a deputada e poetisa Natália Correia, defensora do "sim" e o poema do "truca-truca", que dedicou a um deputado do CDS, João Morgado, que estava na trincheira do "não". Foi em Novembro de 1982, no primeiro debate parlamentar sobre a interrupção voluntária da gravidez. Estava o debate a meio e Morgado disse que "o acto sexual é para fazer filhos". Ficou célebre o debate e o poema de Natália: "Já que o coito, diz Morgado,/ tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisca manduca/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca,/ sendo pai só de um rebento,/ lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou - parca ração! -/ uma vez."

18.4.05

Prosa Insana # 10

Bem sei, bela toca: estás entregue ao bom abandono! É que sou eu bicho subterrâneo e um bocado esquivo. Di-lo a Natureza, di-lo o horóscopo chinês, digo-te eu, se dúvidas subsistissem. Sabes?, é que nem sempre há tempo para te adornar e de ti cuidar, como mereces; e, para além disso, nem sempre encontro o quadro certo para te embelezar. Fosse sempre a vida o paraíso que desejamos e esta cabeça estaria, sempre, para ti voltada. Mas batalho, toca. Batalho para que te mantenhas tugúrio aprazível. Se consigo? Isso são outros quinhentos, que nem sequer nas minhas contas entram. Cuidar de ti – chega-me, apesar de nestes últimos tempos ser o que menos tem acontecido. É que ando eu pelas profundezas escavando túneis à procura de água, procurando uma raiz de fé, e, já mais à superfície, limpando esta rica floresta, para que o fogo do Verão não a torne pobre, invadida por um negrume de morte. Mas como vês, sempre aqui regresso. E vejo-te um pouco maltratada, sim, mas ainda limpa, ainda com boa cara, ainda a minha bela toca, simples e pacata, onde tão bem repouso. E agora, feita a vistoria que contradiz a minha moral, volto para as escavações, para as limpezas, para as labutas de fazer suar, mas sempre, não te esqueças!, sempre contigo no pensamento.

14.4.05


Friedrich Wilhelm Murnau (1888 - 1931) ficou na História do Cinema como um dos grandes génios da sua época, ligado à corrente artística que nos anos vinte surgiu na Alemanha do pós-guerra, e que da sombra, do medo e da perturbação emergiu, com a sua estética fantasmagórica e subjectiva, naquele movimento que ficou conhecido como expressionismo alemão*. Virado para o mundo interior de personagens em tumulto numa atmosfera sinistra, o expressionismo alemão teve em O Gabinete do Dr. Caligari um dos filmes impulsionadores da corrente, filme realizado por Robert Wiene em 1919, com todos os cenários em tela pintada. Em 1922 Murnau realiza Nosferatu, numa adaptação de Drácula de Bram Stocker. Neste filme admirável e premonitório, Murnau afasta-se da estética de Wiene, privilegiando a acção, rodada em cenários naturais - será este o seu rumo.

O filme de Murnau que aqui trazemos é Sunrise/Aurora (1927) **, baseado no romance Die Reise Nach Tilsit ("Viagem a Tilsit") de Hermann Sudermann, um dos mais belos filmes da história do cinema. Aurora é uma reflexão sobre as decisões humanas, obra superiormente filmada e carregada de um simbolismo que percorre toda a película. Entre o sonho e a realidade, o protagonista procura o sentido da vida, numa viagem em que se depara com a confrontação do que o rodeia e com ele próprio, descendo aos abismos da dúvida, da interrogação, do remorso e do arrependimento. Encarrega-se a vida, os factos quotidianos e a natureza de mostrar àquele homem o sentido que deseja para a sua vida: uma mudança radical, abandonando tudo pela fantasiosa imaginação de um mundo por um momento ideal, perfeito, porque nascido do sonho, ou recuperar a existência consciente? Onde está a felicidade? Na vida real ou na vida imaginária? Que caminho seguir? E que papel tem o sobrenatural naquele cenário especifico, nos nossos desejos íntimos e nas nossas decisões? Concreta e ao mesmo tempo mística, esta obra-prima, poética, esteticamente emocionante, garanto-vos, fica na memória. Pelo menos, na memória de alguns, daqueles que ainda vivem o cinema como arte total, e que se permitem (e procuram) ficar como este filme: mudos... e pensativos...
* "O expressionismo alemão é uma cultura de crise, reflexo do profundo desalento espiritual gestado nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. A face da morte, estampada nos rostos de milhões de jovens precocemente ceifados, despertou os sentimentos de terror, misticismo e magia, adormecidos nas mais recônditas paragens da alma alemã. A certeza positiva dos sonhos de glória do imperialismo germânico cedeu espaço à sombra da derrota, da humilhação e do desespero. O renascimento do horror foi, pois, o fermento ideal para o surgimento do espírito expressionista, fim de todas as ilusões de poder alimentadas pela lucidez delirante da Era Bismarckeana. Povoado de incertezas e sombras, surgia, inclemente, um novo mundo, e o movimento expressionista, apoteose do indistinto e do vago, se transformaria na estética perfeita para esta realidade atroz."
** "A expansão da consciência pressupõe uma retracção das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa.
Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme, Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeiro twice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito."

6.4.05


Brevemente...

Vida e Obra de Um Poeta

"Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aquilo que conseguimos ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interiores e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas experiências, e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda, na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desconhecidos, amigos, inimigos – e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos em relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas – ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra. Avancei muito no conhecimento da divindade, desde o dia em que escrevi um dístico na parede de um urinol de Lisboa até à minha obra-prima (um poema dramático), oferecida com maliciosa ingenuidade a uma prostituta nas docas de Amesterdão (ela não sabia português). Um poema desesperadamente religioso que falava do corpo e da sua magnificência e perenidade.
Comecei a escrever com determinação aos trinta anos, quando corria o bairro des Abbesses, em Paris, para meter-me nalguma casa que tivesse a porta aberta, e ir dormir na retrete. Explico: em Paris, os três filhos de Deus debatiam-se com o árduo problema da dormida. Éramos um português e dois espanhóis, desaparecidos um dia de suas casas, das pátrias, e encontrados no acaso de vadiagens e bebedeiras. Tínhamos assuntos religiosos comuns. Para dormir, havia acidentais quartos de amigos, a entrada do metropolitano e, no bom tempo, as pontes do rio. Mas eu precisava de solidão e conforto (era a obra que, secretamente, se desenvolvia em mim) – e tomei como minha uma ideia que circulava pela cidade. Era possível dormir nas retretes, nas retretes privadas, nas retretes das casas das outras pessoas! A ideia abalou-me tanto que andei confuso e comovido durante dias. Fui ao ponto de escrever um poema inteiramente inspirado nela. Eu e os meus amigos, poucas semanas passadas sobre o início desta nova vida surpreendente, tínhamos já uma lista de cento e vinte e dois prédios onde devíamos tentar a entrada. Simples: estudávamos as portas de determinado bairro residencial, a ver se poderiam ser abertas de um modo qualquer, ou se as deixavam abertas. Chegava a hora do sono alheio, cada um subia até à sua retrete. Uma ascensão! Talvez Deus estivesse lá em cima à nossa espera. Claro que só escolhíamos edifícios antigos, com sentina de patamar para uso comum dos inquilinos. Acendia a luz, instalava-me fechado por dentro, e pensava ou lia, ou escrevia às vezes. Nunca a solidão foi para mim tão fértil. Se alguma pessoa vinha à retrete a meio da noite, eu puxava o autoclismo e saía como inquilino também, natural, desenvolto nos meus direitos. Defecação democrática, por ludíbrio, no seio da grande família burguesa. No dia seguinte reuníamo-nos os três, os filhos de Deus, para falar das nossas aspirações e meditações, da inspiradora solidão nocturna.
Foi assim que me pus a escrever – enquanto esperava a oportunidade de entrar numa casa (numa retrete, digo) ou quando, já nela, começava a pensar, a investigar, a decifrar, entregue e defendido na retrete, na profundidade que eu mesmo transportara ao longo dos anos, mal aflorada por instantes e agora enfim oferecida. O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessara o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim. O rosto anunciava com antecedência a chegada súbita de um sentimento muito agudo e quase doloroso das coisas, sua concordância e relações, a chegada da iluminação. Num dos poemas que deixei em Paris falo disto explicitamente, falo do homem vendo nos próprios olhos a nascente e brilhante imagem do mundo. É um bom poema em que trabalhei quinze noites seguidas, sempre sentado numa retrete da rue des Abbesses.
Outro princípio fulcral na minha poesia – o da Fêmaea-Mãe – foi descoberto, imaginado, organizado e assumido na mesma retrete. Devo muito a essa retrete. Certas noites dava uma volta por Pigalle e estudava miudamente os cartazes nas casas de stip-tease. Absorvia a nudez retratada das actrizes como se absorvesse um plasma forte. Elas eram intérpretes de Deua. Via nesses corpos uma declaração divina, e o jogo espectacular do que chamam vícios era uma espécie de escrita manifesta, uma alusiva visibilização de Deus. E tudo isso me era dado como um caminho de conhecimento, uma complexa viabilidade. Todas as putas de pigalle eram minhas mães; a carne fotografada, tornada viva em mim pelo enredo da comoção, era a carne-mãe e amparava-me na descoberta e, posteriormente, na magnificação e glorificação do mundo.
Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me reparte o tempo. Abro-me à unidade da vida – e amo o passado e o futuro com um só fervor: completo. A geografia não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturidade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício – a ferocidade dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris – só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.
E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno. "
Herberto Helder, Os Passos em Volta