30.11.04
É este Governo um bebé que, coitadinho, nascido de parto tão difícil, precisa de mil cuidados na incubadora, ela própria, a máquina, maltratada pelos familiares que sovam o pobre recém-nascido em vez de o acarinharem. E não somos nós, línguas viperinas, que lançamos a comparação metafórica – é o próprio primeiro-ministro que a faz e salta em defesa desta criança problemática, muito indefesa, muito frágil, com perigosa tendência para a desagregação, para doenças, para crises. Mas, sendo criança problemática, há que cuidar dela com mais atenção. E que fazem? Fazem-lhe tanto mal que até pontapés lhe dão! Veja-se o caso do Professor Cavaco Silva que vem dizer que os bons políticos têm de sair da toca para afugentar os maus. Quem são uns e outros não sabemos nós ao certo, nós, gente do povo que nos entregamos às artes da adivinhação para chegar a nomes certos a partir das meias palavras. Estamos acostumados, e, se formos bons entendedores, as meias palavras chegam para perceber que alguns dos maus estão, alegremente, na máquina incubadora, aquela da deliciosa e esclarecedora metáfora do primeiro-ministro que muito nos ajuda na compreensão de quatro meses de vida do Governo e do desgoverno a que temos assistido. Afinal, há que desculpar as criancices, as indecisões, as sestas, as trapalhadas e confusões que este Governo-Bebé generosamente nos tem oferecido. Desculpai-os, Senhor(es), que eles ainda são jovens incubados a tentar saber o que fazem. E é próprio dos mais novos não medirem as palavras. É próprio dos jovens fazerem hoje e estragarem amanhã. Não ter certezas de nada. Agir sem muito pensar. Ler todos os jornais em quinze minutos e achar-se devidamente informado, como disse o nosso Santana à Judite em entrevista na televisão do Estado. Urge, pois, desculpá-los a todos. Desculpar Gomes da Silva, Morais Sarmento e os demais que lutam pela vida dentro da incubadora. Não fazem por mal. Só querem viver. Resta-nos saber se o insigne Presidente concorda com a eutanásia e se acha oportuno aplicá-la, a titulo meramente experimental, com o enfermiço bebé.
25.11.04
De Canas à Boa Hora
Em Canas de Senhorim o povo deita-se à rua, deita-se na rua, acorrenta-se, corta vias, pára comboios, quer e promete luta. Querem a elevação a concelho que o Sr. Presidente, dizem, lhes prometeu e que agora vem dar o dito pelo veto. Que não, assegura o Presidente. Nunca prometera nada a ninguém. E, de mais a mais, isto está a tornar-se num caso de polícia, um ataque - intolerável, de resto - à pobre democracia, essa menina desgastada e maltratada que em tanta boca tem sido emporcalhada e vítima de sevícias, logo a ela que ainda é criança a querer crescer neste jardim, também ele, por desgraçado sinal, pouco cuidado. Levanta-se o circo que promete não abandonar os nossos telejornais, a avaliar pelas intenções dos cidadãos organizados em comissões, muito decididos como estão em manter o tom aguerrido das suas reivindicações. Agradece a televisão que tem material do melhor, e em directo, indagando e tomando o pulso à desordem provocada pelos populares, porque o povo interessa-se (e de que maneira!) por estas margens noticiosas: zaragatas, protestos, acidentes aparatosos, escândalos e matanças, incêndios à porta de casa. E com mais não se deleita porque a Alta Autoridade para a Comunicação Social, essa coisa sem credibilidade na boca de certa gente política com laranja (coligada) ao peito, conseguiu acabar com a publicidade de programas nos noticiários das televisões. E por falar em publicidade, já rolam os cuidadosos grafismos que embalam a próxima maratona noticiosa que se avizinha: o julgamento da Casa Pia. A SIC reclama para si a justiça de ter sido a primeira a denunciar o caso e promete a isenção que os caracteriza na cobertura do acontecimento, com início marcado para as geladas oito da matina. E todas as estações farão as suas emissões especiais. Jornalistas irão estar na sala arranjada para albergar os senhores profissionais da comunicação no Tribunal da Boa Hora, esperando por ela, a hora em que alguém lhes trará o relato do lado de lá da porta porque vai ser este um julgamento à porta fechada. Mas mesmo que sejam poucos os minutos de comunicados, as emissões vão durar horas e horas onde se abrem os arquivos, repetindo as muitas imagens de que se dispõe de dois longos anos repletos de acontecimentos, novamente recordados, passo a passo. O início, as voltas, as reviravoltas, os escândalos, as dores, as angustias, as caras (as desfocadas e as captadas no frame exacto da entrada nos calabouços da judiciária), os advogados, as trocas de advogados, os juízes, as danças dos juízes, as saídas apoteóticas comemoradas em Assembleias, enfim, tudo será recordado, enquanto se vai pedindo, ao mesmo tempo, serenidade, calminha nos comentários, mas, se para isso lhes der, plantam-se nos portões das casas dos arguidos à espera de entradas e saídas ou de alguma palavrinha, se fizer o favor que a gente está em directo e não custa nada. E Deus queira que não haja um surto de notícias-parasita, nascidas no caldo primordial das fugas de informação. Não há-de acontecer. Vai tudo correr, em marcha lenta, com serenidade a rodos e muitas horas de informação, com um olho no julgamento, e, talvez, outro nos medidores de audiências. Espera-se que não. Espera-se contenção. A ver vamos o que nos dão.
21.11.04
Pequeno pensamento de pobre bicho
Faço bem em me ocultar, pensou o caracol, recolhido na frescura da sua casca. Não me meto com ninguém, ninguém se mete comigo. Estou afastado das intrigas, dos bate-boca, dos bate na boca, das cornadas viscosas, dos maledicentes que espalham ranho por tudo quanto é sítio só pelo prazer de fazer a sua rinorreia brilhar mais e mais alto, sob o sol ardente. Não quero saber desses outros caracóis, promíscuos na crítica, nem das amigas tartarugas vencedoras de corridas fabulosas. Eu vou ao meu ritmo, às vezes parado, recolhido, produzindo o muco que me vai apetecendo, aquele e só aquele, o indispensável para manter os cornos com viço nas alturas de sair da casca. Mas bem sei, bem sei: um dia destes, quando for atraído pela gula que do pecado não se livra e ceder à tentação de sair desta frescura só minha, nessa altura irei parar a um prato qualquer - serei petisco para alguém; ou então, serei esmagado por uma patada maior.
De Rilke:
(...) Muitas vezes ponho-me a pensar como nasceram o Céu e a Morte: foi porque afastámos de nós o que nos era mais precioso, porque havia ainda tantas outras coisas a fazer primeiro, e porque essas coisas preciosas não estavam em segurança em nós, seres tão ocupados. Agora passaram séculos sobre isso e habituámos-nos a coisas menores. Já não reconhecemos o que nos é próprio e assustamo-nos perante a sua extrema grandeza. Não será isso possível?
Em "As Anotações de Malte Laurids Brigge"
20.11.04
18.11.04
Nino Rota nasceu em Milão em 1911. Desde cedo considerado um menino-prodígio, Nino Rota compôs várias óperas e colaborou em várias peças de teatro, mas foi no cinema que se evidenciou, muito por culpa do Óscar atribuído pela academia americana, premiando o seu trabalho em "O Padrinho II". Muito antes, em 1952, Nino Rota havia iniciado uma colaboração que se revelou duradoura com Federico Fellini. O Xeique Branco foi o primeiro de muitos filmes em que este abençoado casamento entre génios brilhou. Seguiram-se um punhado de obras importantes: "A Estrada", "A Doce Vida", "Oito e Meio", "Julieta dos Espíritos", etc., em que desenvolveram um universo onírico assente no diálogo entre imagem e som que se complementam de forma única, circular e emocionante, bela e profundamente tocante, sempre pintado pela fantasia de ambos. De Nino Rota, Fellini disse:
(...) Mas o colaborador mais precioso que tive, posso responder sem pensar, era Nino Rota. Entre nós houve um entendimento imediato, pleno, total, desde o Xeique Branco, o primeiro filme que fizemos juntos. O nosso entendimento não precisou de rodagem. Eu tinha resolvido ser realizador e Nino já existia como premissa para que eu continuasse a sê-lo. Tinha uma imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes, pelo que não tinha necessidade de ver as imagens dos meus filmes. Quando lhe perguntava que motivos tinha em mente para comentar esta ou aquela sequência sentia claramente que as imagens não lhe diziam respeito: o seu era um mundo interior, a que a realidade tinha pouca possibilidade de acesso. Vivia a música com a liberdade e a facilidade de uma criatura viva numa dimensão que lhe é espontaneamente congenial.
Era uma criatura que trazia consigo uma qualidade rara, aquela qualidade preciosa que pertence à esfera da intuição. Era este o dom que o mantinha inocente, gracioso, alegre. Mas não gostaria que me interpretassem mal. Quando se apresentava a ocasião, e até quando a ocasião não se apresentava, dizia coisas muito perspicazes, profundas, dava opiniões de impressionante exactidão sobre homens e coisas. Como as crianças, como os homens simples, como certos sensitivos, como certa gente inocente e cândida, dizia inesperadamente coisas deslumbrantes...
(...) Eu punha-me ali, junto ao piano, a contar-lhe o filme, a explicar-lhe o que pretendia sugerir com esta ou aquela imagem, com esta ou aquela sequência; mas ele não me seguia, distraía-se, embora fosse concordando, embora fosse dizendo que sim com grandes gestos de assentimento. Na realidade estava a estabelecer contacto consigo próprio, com os motivos musicais que já tinha dentro dele. E quando se estabelecia esse contacto, já não me acompanhava, já não me ouvia, punha as mãos no piano e lá ia ele como um médium, como um verdadeiro artista. No fim, eu dizia-lhe: «É lindo!» Mas ele respondia-me: «Já não me lembro de nada.» Eram as catástrofes a que depois tínhamos de fazer frente com os gravadores. (...)
Era uma verdadeira alegria trabalhar com ele. A sua criatividade sentíamo-la tão próxima que nos comunicava uma espécie de embriaguez até nos dar a sensação de que éramos nós próprios que estávamos a compor a música.
Nino chegava no fim, quando o stress pela rodagem, a montagem, a dobragem tinha atingido o máximo, mas logo que ele chegava o stress desaparecia e tudo se transformava numa festa, o filme entrava numa zona alegre, serena, fantástica, numa atmosfera da qual recebia como que uma nova vida. E era sempre uma surpresa quando, depois de ter posto no filme tanto sentimento, tanta emoção, tanta luz, ele se voltava para mim a perguntar-me, aludindo ao protagonista: «Mas aquele quem é?» «É o protagonista», respondia-lhe eu. «E o que é que faz? - acrescentava ele em tom de censura - Tu nunca me dizes nada!» A nossa era uma amizade vivida com os sons.
(In Fellini por Fellini)
Nino Rota faleceu no dia 10 de Abril de 1979. Para sempre ficam as melodias que criou. Aqui ficam alguns excertos, interpretados pelo Nino Rota Ensemble:
15.11.04
É um risco
... gosto de aparências - gosto de aparências - gosto de aparências - gosto de aparências ...
PROSA INSANA # 5
Um dia destes comento uma loucura. Está decidido. Vai ser num domingo. Visto aquelas calças da família do vinco bancário, ou aquelas muito desportivas com bolsos modernos. Sim, essas, para dar ares de jovem rebelde. Tapo a careca com um gorro da moda e lá vou eu, de jipe (hei-de arranjá-lo), sempre a abrir em direcção ao Macdonalds. Vou encher o bandulho com menus económicos e sigo para o cinema comercial, lá mesmo no interior da grande superfície onde compro o bilhete para a comédia do momento parida pelos estúdios da grande máquina americana. Agarro num balde de pipocas, dos grandes, e com os bolsos inchados de rebuçados, daqueles embrulhados no mais ruidoso papel, entro na sala. E vou passar o filme todo a ruminar o açúcar, a rir-me como um maluco e, quem sabe?, a meter-me com a garotinha mais desinibida que, se a sorte me sorrir, irá estar ao meu lado, insinuando intimidades, daquelas aparentemente pueris. Digo umas graçolas em tom médio. Ouço um psiu vindo da fila de trás, insulto o latagão insolente que me mandou calar. Gera-se uma discussão que acabará com as minhas caralhadas ditas de pé, acompanhadas com energéticos movimentos que dizem: ou te calas ou desfaço-te aqui mesmo, macaco de ginásio. Conquisto definitivamente a menina do lado, ansiosa por diversão. Saio. Ela mete-se comigo. Não lhe ligo nenhuma. Acabo a noite enrolado no cetim da cara pele feminina de um qualquer Elefante Branco (hei-de arranjar o dinheiro) e chego a casa alumiado pelos primeiros raios solares, a desmaiar de bêbado e a gritar: isto é que é vida, caralho!
Reality-Show
Da toca assiste-se ao verão patrocinado por S. Martinho, muito dado, como se sabe, às degustações do magusto, com víveres seleccionados e bebida para as gentes saltarem sobre a fogueira. Trouxe castanhas a não-sei-quantos euros o quilo, figos muito e pouco passados e nozes, iguarias para serem regadas, e bem, como se deseja, com água que é vinho feito com o pé, para a tontura subir à cabeça. Foi neste verão animado que reapareceu António Guterres para dizer que isto por cá anda com laivos de reality-show, com perigosa promiscuidade entre poderes. Tem razão o orador das estatísticas, dos números e das falas desenvoltas. Mas o espectáculo começou há muito tempo, senhor. Há muito que este jardim se converteu ao olhar do Big Brother, tanto que até nas escolas das criancinhas entrou para ser analisado. Agora, talvez, a coisa esteja mais visível, mais tentacular, mais entregue ao show versus realidade, ao show e realidade, às caras e notícias; ao “Caras Notícias”. São pecados da época, senhor. Que Grande Irmão da humanidade acabará com eles?
Outras caras e outras notícias preencheram os horários que chamam de nobres, prolongados nas tele-jornadas da informação, sempre de objectiva em riste, mui atenta, rodeada pelos mesmos comentadores e colunistas de sempre que de olho clínico muito (con)centrado traduziram os desenvolvimentos do extraordinário episódio do Congresso do PSD que se quis às direitas na sua vigésima sexta edição, sob o auspicioso signo da confiança e da verdade que em alvas letras garrafais sobressaíram do mar laranja do cenário para que o povo não deixasse de ver, nem de ler, nem de entender de uma vez por todas que ela, a verdade verdadinha, existe, sem ruídos que manchem a alvura de tão nobre palavra. E antes do pano cair sobre esta produção, ainda houve tempo para o aclamado primeiro-ministro lançar, qual bala, uma promessa bombástica: não pretende o senhor pedir-nos mais esforços, primeiro às portuguesas, como mandam as boas maneiras, depois aos portugueses, porque ambos os sexos têm sido demasiado castigados nestes últimos tempos, muito por culpa das leis da economia, madrasta e global nestes tempos de instabilidades mil. Cá estaremos para ver os nossos ordenados aumentados, o poder de compra aumentar, a vida começar a desbotar daquele laranja para um cor-de-rosa iluminado e andarmos por aí cheiinhos de confiança e com um sorriso rasgado nos lábios, ante a expectativa de sentirmos o gosto da lagosta na viragem do ano. Estamos muito certos de que isso acontecerá a muitos de nós. Obrigado pela confiança, Sr. Santana.
Outras caras e outras notícias preencheram os horários que chamam de nobres, prolongados nas tele-jornadas da informação, sempre de objectiva em riste, mui atenta, rodeada pelos mesmos comentadores e colunistas de sempre que de olho clínico muito (con)centrado traduziram os desenvolvimentos do extraordinário episódio do Congresso do PSD que se quis às direitas na sua vigésima sexta edição, sob o auspicioso signo da confiança e da verdade que em alvas letras garrafais sobressaíram do mar laranja do cenário para que o povo não deixasse de ver, nem de ler, nem de entender de uma vez por todas que ela, a verdade verdadinha, existe, sem ruídos que manchem a alvura de tão nobre palavra. E antes do pano cair sobre esta produção, ainda houve tempo para o aclamado primeiro-ministro lançar, qual bala, uma promessa bombástica: não pretende o senhor pedir-nos mais esforços, primeiro às portuguesas, como mandam as boas maneiras, depois aos portugueses, porque ambos os sexos têm sido demasiado castigados nestes últimos tempos, muito por culpa das leis da economia, madrasta e global nestes tempos de instabilidades mil. Cá estaremos para ver os nossos ordenados aumentados, o poder de compra aumentar, a vida começar a desbotar daquele laranja para um cor-de-rosa iluminado e andarmos por aí cheiinhos de confiança e com um sorriso rasgado nos lábios, ante a expectativa de sentirmos o gosto da lagosta na viragem do ano. Estamos muito certos de que isso acontecerá a muitos de nós. Obrigado pela confiança, Sr. Santana.
12.11.04
It is a peculiarity of the English language that the most profound human emotions are conveyed in the simplest of words - words like love, hate, find, lose, save, kill, need, want. Rufus Wainwright chose the last of these resonant four-letter words as the title for his third album. "I called the record 'Want'" he says, "because it sums up what I want."
Rufus Wainwright regressa a Portugal. É amanhã. Na Aula Magna.
9.11.04
Só se o homem mandar III
Sabes?, dizem-me que falo demasiado contigo, que tu não percebes nada do meu ladrar mas que mesmo assim insisto nessa patética história de comunicar contigo. Explico-lhes eu que ficas mais calmo quando te explico que saio mas que volto, que queria ficar contigo ou levar-te para o pesadelo do trabalho mas que eles não me deixam e portanto tens de ficar na casa que é caixa sem jardim porque nós somos assim para o remediado, não é Lindocão? E explico-lhes mais: digo-lhes que quando não falo contigo tu ficas agitado, que os vizinhos impacientam-se e, de trombas arreliadas, queixam-se dos teus queixumes caninos. Digo-lhes que quando chego do emprego a casa está virada do avesso. Sabes o que eles fazem? Gracejam e viram-me a cara. Assim, como tu fazes, quando te digo que hoje não te posso levar para a praia porque o tempo não deixa. O tempo! Isso, sim; percebo que não percebas! Mas o resto? Entendes. Percebemo-nos. Porque somos iguais, Lindocão. Às vezes também me olham de esguelha, sabes?, desconfiados das minhas poucas falas. Também eu sou o rafeiro, também eu sou o esquisito, aquele que se afasta, aquele que não quer saber das intrigas, aquele que ladra para não ser mordido, aquele rafeiro que se isola, aquele cão que não comenta quem come quem e quem fica com a melhor parte. O diferente, rosnam. O que ouve mais e fala menos, de menos. De menos? Que querem eles, Lindocão? Não sabemos, não. Nem saberemos nunca. Mas há-de chegar o dia em que seremos mesmo iguais. Serei eu o cão. É uma ordem! Ainda sou humano; ainda mando eu. Não te quero humano. Serei eu o cão.
É tudo mais fácil. Acredita. Não nos preocupamos em saber o que é MESMO gostar, em saber o que é moral. Não nos preocupamos com as complexas relações entre bípedes. É mais fácil. Comunicamos com cheiradelas ocasionais, com poucos latidos porque quanto mais se diz mais incompreensão se gera. E andamos os dois por aí. Assim: livres e bem dispostos. Está combinado. Eu, o cão.
Elliott Erwitt - New York, 2000
É tudo mais fácil. Acredita. Não nos preocupamos em saber o que é MESMO gostar, em saber o que é moral. Não nos preocupamos com as complexas relações entre bípedes. É mais fácil. Comunicamos com cheiradelas ocasionais, com poucos latidos porque quanto mais se diz mais incompreensão se gera. E andamos os dois por aí. Assim: livres e bem dispostos. Está combinado. Eu, o cão.
Elliott Erwitt - New York, 2000
5
Já o disse? Aprendo a ver. Sim, estou a começar. Ainda é difícil. Mas pretendo aproveitar o meu tempo.
Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda mais, pois cada uma tem vários. Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples; não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os filhos. Mas também acontece que os seus cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um rosto.
Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez incrível, um após outro, e gastam-nos. Primeiro parece-lhes que chegariam para sempre, mas, mal fazem quarenta anos, o que têm já é o último. Tudo isto tem, evidentemente, o seu lado trágico. Não estão habituadas a poupar rostos, o último fica gasto ao fim de oito dias, tem buracos, em muitos pontos é fino como papel, e então vai aparecendo gradualmente o que está por baixo, o não-rosto, e é com ele que andam. (...)
Rainer Maria Rilke, "As Anotações de Malte Laurids Brigge"
6.11.04
Como em Londres - Coroa
A brilhante ideia já baila nos cérebros do bom Governo: queres entrar na grande capital ou no Porto? Ide de transportes, caríssimo cidadão. As cidades estão poluídas: qualquer dia será impossível lá entrar, será irrespirável. O trânsito é caótico. Já se deram conta da quantidade de horas que passam ao volante, com os nervos em franja, preocupados com os atrasos, roendo as unhas porque vão chegar atrasados ao emprego? E os buzinões dos espertalhões? E as manobras perigosas dos cabrões que de um momento para o outro acabam com a nossa vida? E os regressos aos lares? Também não são melhores: parados ou em marcha lenta, fechados nos duros pensamentos das agruras da vida. É o filho que espera no infantário que não tarda nada fecha e nós ainda presos no trânsito. E aquela chatice no trabalho com o filho-da-puta do colega que nos fez aquela desfeita? E as difíceis aritméticas do orçamento familiar? Todos esses pensamentos podem emergir em plena fila que não anda. Aumenta a vossa angústia. Chegam a casa esgotados. Não querem saber de mais nada (já não aguentam) e têm de dar atenção ao rebento que não tem culpa de ter nascido e que da vida adulta nada sabe e quer atenção e pede e vós, vós cansados, com tanta merda na cabeça que nem uma sílaba conseguem ouvir, quanto mais uma choradeira da criança que legitimamente reclama atenção. Pensai bem. Não será melhor ir e vir de transportes com um livro ou um jornal ao colo? Ou mesmo ouvir a velhota que desesperadamente precisa de falar para espantar a solidão que vive nas paredes do lar vazio. Oh, bem sei, bem sei! Os transportes não funcionam muito bem. Mas quem sabe se as coisas não mudam se os utilizarmos mais, se deixarmos de ser tão comodistas. As coisas até têm mudado. O metro aumentou as cores das linhas. Quando existir menor número de veículos particulares, talvez os autocarros não se atrasem nas carreiras. Acreditemos: qualquer dia a pontualidade britânica instala-se no nosso quotidiano. Se desejamos importar medidas, criemos condições para que funcionem, pelo menos, como em Londres. E, de qualquer maneira, essa coisa das portagens é só uma ideia. Ainda.
5.11.04
Como em Londres - Cara
A brilhante ideia já baila nos cérebros do bom Governo: queres entrar na grande capital ou no Porto? Ai sim? Então, terás de pagar, caríssimo cidadão. Portagens à entrada dos grandes centros populacionais, essa ideia inglesa que importa importar. Lembrai-vos que em Londres a astuta medida para pagar, pegou. Não queremos nós estar nesse comboio da Europa que à frente segue? Então!? O que precisamos é de clonar as boas (e benéficas!) medidas dessa moderna e poderosa locomotiva. Seguir-lhes o rasto. Tocar-lhes no calcanhar. Não temos, é mais ou menos certo, o mesmo custo de vida, a mesma rede de transportes, o mesmo funcionamento, o mesmo rigor nos horários, mas… enfim, também não poderíamos pedir tamanha descaracterização, facilmente conotada como “falta de patriotismo”. Não somos ingleses, não sofremos dessa doença da pontualidade que por lá grassa, não bebemos chá às cinco, muito menos com leite. Por cá, a gente somos mais adeptos do atraso. É coisa que está no sangue e, assim sendo, levará algum tempo a purificar. Portanto, os nossos transportes irão continuar a funcionar como têm funcionado até hoje, com a ligeira diferença de poder aumentar o custo dos passes sociais porque a gente nada manda nessa dança do petróleo, como tal, dançaremos conforme os acordes da cançoneta internacional. Vós, caros cidadãos, só tereis de cumprir. É para o bem de todos. A bem da Nação, a bem do ambiente, a bem da qualidade de vida. E, de qualquer maneira, é só uma ideia! Para pagar. E calar, se nas esburacadas cidades quiser entrar.
“Está em causa a qualidade de vida nas grandes cidades”, argumenta o bom Governo. Não sei porquê, mas lembro-me de um tal dia sem carros, em Lisboa, com uma única rua cortada ao trânsito, esse cancro entranhado na qualidade da boa vida da grande cidade. E outra ideia, decerto torpe, se me encadeia no pensamento: será que querem introduzir portagens, sabendo que as alternativas são más, muito más? Não. Não pode ser. E é só uma ideia. Ainda...
“Está em causa a qualidade de vida nas grandes cidades”, argumenta o bom Governo. Não sei porquê, mas lembro-me de um tal dia sem carros, em Lisboa, com uma única rua cortada ao trânsito, esse cancro entranhado na qualidade da boa vida da grande cidade. E outra ideia, decerto torpe, se me encadeia no pensamento: será que querem introduzir portagens, sabendo que as alternativas são más, muito más? Não. Não pode ser. E é só uma ideia. Ainda...